O poetar de Georg Trakl: um contraponto com o poetar de Hölderlin

Nietzsche na última fase de sua Filosofia amadureceu a sua meditação acerca do dionisíaco incorporando o Deus Dioniso na figura do Cristo: "Dioniso, o Crucificado". Muito possivelmente, esse seu ampliamento de perspectiva provém de sua leitura de Hölderlin, que também tem na maturação de sua Poética a inserção do "Sírio, o melhor dos Deuses", segundo ele.

Trakl, leitor tanto de Hölderlin quanto de Nietzsche, e muito influenciado pelas figuras de pensamento deste último (o mesmo do caminho para cima e para baixo, para além da dicotomia dos valores supremos de Bem e Mal, o eterno retorno, a hora mais silenciosa, e, por fim, esta do "Dioniso, o Crucificado") criou um contraponto à ditirâmbica dramatização de Hölderlin da Saga do Deus Dioniso, conduzindo o seu Poeta, nomeadamente a personagem Élis, pela via da dramatização do percurso celeste do Deus Hélio, e, isto, precisamente, rumo à madrugada da hora mais silenciosa, figurada pelo Pensamento de Nietzsche. Em Trakl, o Crucificado não é assimilado no Deus Dioniso, mas sim no Deus Hélio, em sua rota para o Ocaso. Com esse contraponto, o Poeta dissolve de todo na linguagem poética a dicotomia Dioniso-Hélio, isto é, escuridão-claridade - este Deus tem que marchar para a madrugada de sua hora mais silenciosa e aquele tem retornar, isto é, renascer na hora mais clara.

E o ponto de interseção onde deve se sagrar a dissolução dessa dicotomia não é outro que o seio da Vésper:

Rumo a Vésper o forasteiro perde-se na negra destruição de Novembro
Entre os ramos apodrecidos, ao longo de muros cobertos de lepra,
Por onde antes seguiu o irmão sagrado,
Absorto nos suaves acordes de sua alienação.

(Helian)

A contemplação de Heidegger da Poesia de Trakl é imprescindível para nos possibilitar propor tal contraponto do seu poetar com o de Hölderlin seguindo os acenos de Nietzsche. O Poeta de Trakl de modo distinto do de Hölderlin, que vai ao encontro do aprendizado do nacional no estrangeiro, através do Mar, antes peregrina pela prístina vereda de ossos que margeia a descida do Rio Kidron para o vale, por onde outrora passou o "Irmão sagrado", já ressuscitado.  Por que por ali? Porque por essa senda,  o forasteiro, alienando-se dos homens selvagens de seu tempo, refaz o caminho do Monte das Oliveiras, onde foi crucificado o Cristo, e segue atravessando o vale que abriga o velho cemitério erigido na vizinhança do lugar em que  o Irmão sagrado foi sepultado e em que ressuscitou — circunstância que ditou o fim para a raça dos danados, fim esse que nós hodiernos damos a conclusão histórica. Do que são e como estão aqueles que o forasteiro deixa para trás canta esses versos do mesmo Poema agora mencionado:
Nas águas negras se refletem os leprosos;

Ou abrem as vestes manchadas de esterco
Chorando ao balsâmico vento, que da rósea colina sopra.
e dando o anúncio do preparo de um novo tempo sussurrado pelo vento balsâmico do monte, cantam esses outros versos:
Para as cabanas de barro trepa vinho purpúreo
Feixes tonantes de grãos amarelos,
O zumbido das abelhas, o voo do grou.
À tardinha se encontra o ressuscitado sobre a vereda de ossos.
Esse Poema é exemplar na dramatização do ocaso do Deus em reporto imediato ao ocaso do Gênero decomposto. Veja-se nesses versos:
Oh, quão solitário finda o vento da tarde.
Morrendo a cabeça se inclina para a escuridão da
Oliveira.
Consternador é o ocaso do Gênero.
Nessas horas se enchem os olhos do vidente
Com o ouro das estrelas.

Os dois versos dessa última estrofe já indicam o percurso que deve tomar o forasteiro em sua repetição do percurso do Mestre. Daí que Élis, o peregrino primeiro, ao qual nós hodiernos temos a senda e os passos para lembrar e seguir, daí que ele mesmo navegue no lago noturno sob brilho frio da lua e a luz dourada das estrelas.

Assim, o Poeta de Trakl é o forasteiro, o apartado, que se alienando rumo ao ocaso do Deus solar, que conduz do ano espiritual, isto é, ao Princípio, marcha para a madrugada da hora mais silenciosa. Esse ano espiritual, Trakl o aloca na sexta feira da paixão, onde finda o tempo do Gênero decomposto e se gesta o tempo do novo Gênero ainda por nascer. Se Élis repete os passos do próprio Cristo reapresentando para nós hodiernos a história da decomposição do Gênero dicotômico que impôs a este sua morte prematura,  não o repete apenas procedendo tal representação; ao caminhar ao longo dos muros cobertos da lepra, que levaram o forasteiro a atravessar a aniquilação do inverno de novembro, travessia que deixou o remanescente de neve suportada e da lepra dos homens putrefatos em sua fronte, Élis repete os passos do Irmão sagrado, dramatizando o percurso da própria ascensão do ressuscitado para lago noturno da noite estrelada — ascensão indicada pelo ainda morto ele mesmo, como mostrou os versos apontados.  Esse percurso celeste, denota a superação da dicotomia do Sagrado, pois que o Cristo assimila a imagem do Deus Hélio em seu percurso noturno, oculto aos homens, em meio à luz argêntea da irmã.
Dito isto, é preciso que se exponha agora que figura Trakl dá a nós hodiernos. A nossa figura é aquela do cervo azul. Quem é este cervo? Este aqui é o homem destituído da armadura que moldava sua essência até aqui na forma do animal racional. O cervo azul é o homem cuja animalidade se encontra agora novamente por ser definida. Por isso mesmo ele é azul, isto é, ele se encontra sob a luz crepuscular de seu ocaso enquanto Consciência; ele também, no encalço do forasteiro, do Poeta pioneiro, rumo ao ocaso da madrugada da hora mais silenciosa, Este ocaso, à distinção do ocaso da tardinha, não é mais o crepúsculo dos dias e dos anos da peregrinação que dá início a travessia do Poeta pela aniquilação do inverno de novembro rumo à noite espiritual, é antes aquele ocaso da própria madrugada que espera para inaugurar um novo amanhecer para um novo Gênero, que não será, contudo, desprovido de linhagem, pois que o sofrimento do Gênero decomposto é o dom deposto nas Aras em favor de seu nascimento. O Poeta, o forasteiro, já se encontra meditativo e sereno em sua alienação, em seu apartamento, de nós (que mal nos livramos da brenha espinhosa em que se enreda a selvageria dos danados), Élis já está brincando com suas serpentes brancas em sua lápide, morto, como todo aquele que não é nascido. Nós, que o seguimos, lembrando de sua senda, marchamos aprendizes da dor, isto é, da travessia, ou seja, experientes, rumo a essa mesma madrugada. Talvez também alguns de nós logre chegar ao portal, este do Poema "Uma tarde de inverno":

Há quem, na peregrinação
por sendas escuras, chegue ao portal.

Muito haveria de discorrer ainda sobre esse extraordinário contraponto que o poetar de Trakl tece com poetar de Hölderlin. O espaço que nos permitimos aqui é muito exíguo para seguir acompanhando a peregrinação do forasteiro. Deixamos, contudo, apenas estabelecido que o inaudito e ingente da Poesia de Georg Trakl reside em seu concreto procedimento poético de superação da dicotomia histórica que tanto fez do Cristo um mensageiro da proscrição dos Deuses imemoriais quanto fez destes últimos autênticos desconhecedores Sírio. Conceder ao Cristo o percurso do Deus Hélio rumo à madrugada do Deus Dioniso, significou para o Pensamento a possibilidade de reatar a círculo quebrado já muito antes da invenção torpe da Razão. Assim, se o Poeta Élis pode dramatizando o fim da dicotomia se coroar com adorno feminino, isso é uma indicação para ser muitíssimo meditada sobre a figura feminina do Amor que, desde tempos imemoriais, é a Primogênita do Deus dos Deuses. Se o forasteiro caminha rumo a Vésper, se esta Deusa congrega o ocaso da tarde e o da madrugada, enquanto a Estrela da Montanha do Lótus, dos chineses, então o Irmão sagrado do Poeta é a atribuição da perfeição, isto é, da completude para aquilo que já estava instituído pela Poesia, a mais primordial, é, por fim, a cessação de toda dicotomia.