HEGEL E O SALTO PLATÔNICO

Em 14 de novembro de 1831, o maior filósofo romântico da história do pensamento mundial, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, faleceu. Heidegger, juntamente com Nietzsche, acreditava que Hegel era aquele que havia encerrado a história da filosofia do Logos Ocidental e o pináculo da história da filosofia e da filosofia em geral. Se Platão foi o filósofo do início, então Hegel e Nietzsche foram os filósofos do fim. Neste sentido, Hegel foi o filósofo sumativo.

Tudo é a alteridade do outro

A filosofia política de Hegel é bastante complexa. Ela é baseada em seu quadro filosófico geral. Como nós vimos, cada filosofia sempre tem a possibilidade de extrair uma dimensão política. Como Platão, Hegel na sua filosofia do direito faz esse gesto, pega toda sua filosofia e a aplica na política, i.e., ele explicitamente localiza o lugar da filosofia política no contexto de sua filosofia como um todo. Através da filosofia, ele explica a filosofia política, simultaneamente esclarecendo a política através de sua dimensão metafísica.

Hegel é um filósofo clássico que implicitamente inclui a filosofia política. Neste sentido, Heidegger estava absolutamente correto quando disse que se nós entendêssemos A Fenomenologia do Espírito, então nós poderíamos deduzir todo o resto a partir dela. Quanto à leitura, dois trabalhos fundamentais de Hegel são habitualmente sugeridos: A Fenomenologia do Espírito e a Filosofia do Direito.

A ideia básica de Hegel é a de que existe um Espírito Subjetivo primordial, o “espírito para si” (Alemão: der subjektive Geist). Este ponto coincide com a tese teológica da existência de Deus – o Espírito Subjetivo é Deus para Ele mesmo. A fim de empregar a si mesmo para o Outro, este Espírito Subjetivo se projeta no Espírito Objetivo (Alemão: der objektive Geist) no qual se torna natureza e matéria, i.e., o sujeito se projeta no objeto.

Aqui notamos a diferença fundamental para a topologia cartesiana, que predeterminou a estrutura da modernidade. Para Descartes, há um dualismo entre sujeito e objeto, enquanto que Hegel tenta remover este dualismo e superar o pessimismo epistemológico de Kant através da distinção da matéria ou do objeto e do Espírito. De fato, isto é nada mais do que um desenvolvimento do modelo kantiano do absoluto “Eu sou”, mas interpretado num modelo dinâmico e dialético. Se Fichte foi uma reação a Kant, então Hegel é uma reação a Fichte, mas em constante diálogo com Kant e o cartesianismo.

Portanto, Hegel argumenta que existe um Espírito Subjetivo que revela a si mesmo através do Espírito Objetivo via alienação dialética. A Tese é o Espírito Subjetivo e a Antítese é o Espírito Objetivo ou natureza. Assim sendo, a natureza não é natureza, já que, de acordo com Hegel, nada é idêntico a si mesmo, mas tudo é uma alteridade do Outro, por isso o termo “dialético”.

O ciclo de partida e retorno: o Espírito Absoluto

Em outras palavras, há o Espírito Subjetivo que, como tal, que projeta a si mesmo como a Antítese. Assim se inicia a história. Para Hegel, a filosofia da história é de fundamental significância, pois a história é o processo de desdobramento do Espírito Objetivo, que adquire no novo estágio seu componente espiritual repousando em sua essência.  Mas o primeiro ato do Espírito Objetivo é o de esconder seu caráter espiritual, para personificar a matéria ou a natureza, e então através da história, essa alteridade do Espírito Subjetivo retorna, pelo homem e pela história humana, para a sua essência.

Mas então há uma nova essência; esta já não é mais o Espírito Subjetivo (o “espírito para si”) nem um “espírito para outro”, mas um “espírito em si”. Em outras palavras, o espírito retorna para si mesmo através de sua própria alienação. Assim surge o ciclo de partida e retorno, o segundo sendo de mais importância para Hegel do que a partida. O segundo cria as pré-condições para o retorno, e o retorno, ao findar todo o ciclo, retorna para o Espírito Subjetivo, tornando-se o terceiro espírito – o Espírito Absoluto (Alemão: der absolute Geist). Ou seja, primeiro há o Espírito Subjetivo, então o Espírito Objetivo e então o Espírito Absoluto.

O Espírito Absoluto, de acordo com Hegel, se desdobra pelo decorrer da história humana e vai em direção ao fim da história. O significado da história é a realização do Espírito através da matéria. Primeiro o Espírito tem a si mesmo, mas não é autoconsciente, então ele começa a se perceber, mas não tem a si mesmo. A natureza em si e de si abriga as pré-condições da história, pois ela é um elemento da história. Daí a história da religião, a história das sociedades e como um resultado do desdobramento do Espírito através da história, alcança seu clímax no fim da história, quando o Espírito está totalmente consciente e tem a si mesmo. Tese, Antítese, Síntese. Assim, se finda a história.

Esse é um quadro geral da filosofia hegeliana, a qual tem muitas nuances e complexidades. Assim, de acordo com Hegel, a história se move positivamente, mas este é um positivismo diferente daquele da filosofia da Grande Mãe. O início titânico significa que no início havia o inferior e então o superior. Em sua leitura de Hegel, Marx removeu o Espírito Subjetivo e afirmou que a natureza é auto-aperfeiçoadora. Dessa maneira, ele restaura a filosofia da Grande Mãe, na qual tudo se desenvolve da matéria e da natureza.

Mas Hegel não é Marx. Em Hegel, esse desenvolvimento, esse processo, esse movimento do fundo para cima é baseado no fato de que no princípio houve um salto para baixo. Primeiro o Espírito salta e cai na natureza, então a natureza começa a se desenvolver e a natureza não é outro, mas sim a alteridade do Espírito. A Antítese do Espírito não é simplesmente seu oposto – pois ela mesma o é em sua forma removida. O conceito de “remoção” é muito importante em Hegel, pois a Antítese não destrói a Síntese, mas a remove, a absorve e então demonstra através da Síntese.

Portanto, a Tese não é absoluta, e a Antítese não é absoluta.  Ambas são dialeticamente dependentes. Apenas a Síntese delas é absoluta, através da qual ocorre a remoção da Tese e da Antítese. Nesse sentido, a compreensão hegeliana da história como desenrolar do Espírito acontece em fases: há o (pré-histórico) Espírito Subjetivo, o Espírito Objetivo, que manifesta a si mesmo através da história e, finalmente, o Espírito Absoluto, que se manifesta através da mais alta tensão da história, através da criação de algum tipo de pico cultural e sócio-político, a pirâmide do Espírito, a qual finalmente tornou-se absoluto.

Hegel e a ideia do estado alemão

Onde a filosofia política figura aqui? Claramente, de certa forma, a história torna-se política. É por isso que há em Hegel o conceito de evolução dos sistemas políticos, modelos e regimes como momentos de transformação em Espírito Absoluto. A política é a cristalização da síntese. A história política é o movimento do Espírito para tornar-se absoluto. A política é a história de absolutização do Espírito.

Hegel estabelece uma hierarquia entre as diferentes formas políticas. Na verdade, esta é uma hierarquia evolucionária, já que cada regime é melhor que o anterior. Mas, diferente das ideias de Marx, essa evolução é, ao mesmo tempo, não somente uma reflexão da Antítese, e não é o desenvolvimento da matéria e da natureza. Essa é a distinção do Espírito, que foi originalmente inerente à natureza e à matéria. Do seguinte modo, não há materialismo aqui. Nós estamos lidando com um esquema complexo que combina a opção platônica (no princípio havia Espírito, não matéria) e o modelo evolucionário (no qual nós começamos a considerar a história a partir da Antítese, o que é reminiscente da ideia da Grande Mãe). Marx amputou a parte platônica, por isso sua interpretação de Hegel é puramente materialista. Mas Hegel é mais complexo.

Outro importante ponto em Hegel é como ele define o fim político da história, o pico da transformação da história política e a expressão do Espírito Absoluto. Aqui, Hegel diz algo interessante sobre a Prússia e o estado alemão. Os alemães não tinham um estado, então historicamente não existia tão expressão. Dessa forma, os alemães absorvem a lógica de movimento mundial, e o estado prussiano-alemão é a expressão do Espírito Absoluto. Toda a história é um prelúdio para a formação da Alemanha no século XIX. Hegel disse que os grandes povos são aqueles que têm um grande estado ou uma grande filosofia. Ele disse que os russos têm um grande estado, enquanto no século XIX os alemães não tinham nenhum estado. Dessa forma, os alemães devem ter uma grande filosofia e então um grande estado.

O mais surpreendente é que Hegel formulou a filosofia de um grande estado alemão antes do aparecimento do estado alemão. Ele forjou essa teoria enquanto vivia numa Alemanha fragmentada em principados e que era tudo menos um estado forte e poderoso. Hegel reuniu a Alemanha, dotando-a de uma missão intelectual, e criou, junto com Fichte e Schelling, o conceito idealista e romântico do estado alemão como uma expressão do Espírito tornando-se Absoluto. O pico e o fim da história, de acordo com Hegel, portanto, é o estado alemão.

Além disso, Hegel pensou que o melhor sistema político seria uma monarquia iluminada dominada por filósofos políticos hegelianos, os portadores da Síntese de todo o Espírito mundial, que reconhecem a lógica da história mundial. Hegel considerava si mesmo um profeta da filosofia, da humanidade e da Alemanha, e, de certa forma, ele era um místico. Metodologicamente, a filosofia de Hegel era absolutamente racional, mas irracional em suas premissas. Ele mostrou que a ideia de sociedade civil, a Revolução Francesa e o Iluminismo foram outros momentos dialéticos na formação de uma monarquia iluminada. A sociedade civil é aquela a partir da qual a monarquia se desenvolve e que a monarquia abole. Portanto, Hegel era um monarquista místico que considerava a lógica da história como o caminho de diferentes formas políticas em direção à monarquia russa.

Não é surpresa que tal ideia tenha sido tomada pelos fascistas italianos, especialmente na teoria do estado italiano de Giovanni Gentile, que era um hegeliano. Paradoxalmente, nem o fascismo, nem o nazismo podem ser vistos como representantes do nacionalismo clássico. Nessas duas visões de mundo, havia certos elementos que não podiam ser considerados formas clássicas ou até mesmo radicais do nacionalismo burguês europeu, pois, nesse caso, a adição da instância hegeliana, na forma do Espírito Subjetivo e toda a metafísica da história na qual Gentile construiu as fundações da teoria do fascismo italiano, eram simplesmente o hegelianismo aplicado à Itália.

Apesar do fato de ser considerado um clássico da filosofia, Hegel é um caso  bastante complexo. Sua filosofia política não reflete a ideologia da Terceira Teoria, e o Marxismo foi construído num hegelianismo metafisicamente truncado. Em outras palavras, o hegelianismo de “esquerda” tornou-se a base da Segunda Teoria Política, e o hegelianismo de “direita” influenciou algumas peculiaridades da Terceira Teoria Política. Além disso, a ideia hegeliana de fim da história foi apropriada e aplicada ao modelo liberal por Alexandre Kojève, um estudante de Hegel, além de Francis Fukuyama e outros filósofos. Marx aplicou o “fim da história” ao comunismo. Gentile ao estado e alguns filósofos hegelianos ao triunfo da ordem mundial liberal. Portanto, os últimos disseram que a sociedade civil não é um prolegômeno à monarquia (como acreditava Hegel), mas o topo do desenvolvimento da civilização humana.

Essas ideias foram tomadas como premissa por Francis Fukuyama, que empregou o termo “fim da história”. Tal termo foi de suma importância para Hegel, na medida em que marca o momento final da realização do Espírito em sua fase absoluta ao longo da história, o momento dialético do retorno do Espírito para si, em si e por si – a Síntese.

Nós podemos encontrar no hegelianismo todas as três ideologias clássicas da modernidade, mas isso não significa que o hegelianismo possa ser qualificado desde o ponto de vista de qualquer uma delas. Hegel é maior do que todas as teorias políticas da modernidade, e, portanto, não se prende nelas. Desse modo, no hegelianismo há aquilo que foi apropriado em fragmentos pelas três teorias políticas da modernidade, como há também aquilo que não foi usado, como a ideia do Espírito Subjetivo primordial que precede qualquer movimento abaixo. Esse elemento do salto primordial platônico, Neoplatonismo, que então transita para topologias mais ou menos progressivas e evolucionárias, nos permite evitar a classificação de Hegel como um dos filósofos e filósofos políticos da modernidade, pois o paradigma da modernidade não presume qualquer elemento anterior à matéria.

Uma leitura não-liberal, não-marxista e não-fascista de Hegel nos permite revelar seus componentes para uma alternativa à modernidade e o integrar à Quarta Teoria Política. Através dessa operação, nós movemos Hegel para fora da modernidade na qual ele viveu e pensou, até outro contexto. Esse é outro Hegel, é outra filosofia política hegeliana, cujo foco é no salto platônico abaixo. Tal parte de sua filosofia não recebeu e nem poderia receber personificação política na estrutura do paradigma da modernidade. Todavia, ela pode encontrar expressão no contexto da Quarta Teoria Política.

Tradução: Luiz Campos