O que é o Brasil? O Brasil Visto à Luz da Quarta Teoria Política

O que é o Brasil? O Brasil Visto à Luz da Quarta Teoria Política

O que é o Brasil? Qual é sua identidade? Há algo como uma nação ou povo brasileiro? Há apenas um Brasil ou vários “Brasis”? Estas são as questões fundamentais que se abrem ao horizonte de qualquer dissidente brasileiro no século XXI. São os problemas propedêuticos que devem ser confrontados antes de se querer embarcar em qualquer projeto político-civilizacional que envolva o Brasil. Porque poucos temas são mais centrais nessa era crítica – que é a da pós-modernidade – do que o da identidade. 
 
Poderíamos seguir a sugestão do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro que, em sua obra clássica O povo brasileiro (1999), postulou pelo menos quatro brasis: o crioulo (afro), o caboclo, o sertanejo, o caipira e o austral/sulino (gaúchos e gringos) – mas poderíamos ainda, superando sua classificação, falar também de um Brasil litorâneo, interiorano, rural, ameríndio, quilombola, barroco e, inclusive, de um Brasil metropolitano-cospomolita, onde o liberalismo é difuso e onde o modo de produção capitalista, mesmo em seu estágio financista (DUGIN, 2010), encontra-se já consolidado. Fato é que, seja do ponto de vista étnico-racial, seja da perspectiva étnico-geográfica, a composição identitária do Brasil dificilmente poderia ser posta em termos homogêneos ou homogeneizadores – parafraseando o dito de Carl Schmitt, o Brasil não é um universo político, mas um pluriverso. 
 
193 anos de história política independente, no entanto, não foram suficientes para dar respostas satisfatórias para as questões levantadas acima: eis aí um dos cernes da grande dificuldade em se constituir um projeto civilizacional, aqui, na América Portuguesa. O Brasil, nos últimos dois séculos, já passou pelas mãos de líderes, partidos e facções que representaram, em maior ou em menor grau, todas as três grandes teorias políticas da modernidade (liberalismo, socialismo e nacionalismo, segundo Dugin), e apesar dos variados pontos positivos e negativos distribuídos entre os modos como estas governaram o país, tudo o que foi feito, até então, mostrou-se insuficiente do ponto de vista da multiplicidade identitária que constitui a nação brasileira desde seus primórdios. 
 
E mais: tudo o que foi construído pelos líderes prévios do Brasil, enquanto projeto civilizacional, o foi a partir de algum tipo de simulacro, de paródia. As elites brasileiras das três teorias políticas tentaram impor, verticalmente, algum tipo de visão “ideal” do Brasil. Tentaram construir uma identidade moderna a partir de mistificações, falsificações e superficializações. Mas quando se tenta construir um projeto a partir de um simulacro abstrato de identidade, sobretudo em um território povoado por comunidades dos mais diversos grupos étnicos, raciais, culturas e religiosos, em vários graus de mistura, muitos dos quais organicamente estruturados há gerações, ocorre o inevitável: aniquila-se a diversidade interna em prol de um paradigma oficial, cuja finalidade é “unificar a nação” em um projeto estatal, desenhado por intelectuais desenraizados e, nesse sentido, meros agentes do nomadismo parasitário das elites globalistas e cosmoliberais. 
 
Todas as três teorias políticas da modernidade são culpadas, em algum grau, da corrosão das comunidades tradicionais brasileiras: o governo varguista, maior representante da 3a Teoria Política no Brasil (3TP), por exemplo, queimou publicamente diversas bandeiras estaduais, suprimindo as identidades regionais em nome de uma suposta unificação nacional, em sua Campanha de Nacionalização; reprimiu ferozmente as colônias germânicas, inclusive, limitando o uso público da língua alemã (ROST, 2008) (WERLE, 2003). Promoveu ainda uma noção vaga e ambígua dos ameríndios como portadores da “verdadeira brasilidade”, opondo estes aos migrantes europeus, mas resguardando um destino comum a ambos – ora, o projeto varguista tinha como prerrogativa a ideia de que próprios povos ameríndios deveriam, futuramente, ser integrados à “nacionalidade brasileira”, abdicando das suas condições aborígenes originais (GARFIELD; COLLEGE, 2000, p. 18). E, a despeito do desenvolvimento econômico e de uma posição desalinhada em relação às potências plutocráticas do mundo, o varguismo, além do que já foi exposto, também pôs o Integralismo e outros movimentos de Terceira Posição na ilegalidade. 
 
Com a morte de Vargas, abriu-se espaço para governantes vendidos e alinhados com o atlantismo, numa sucessão de fracassos e de desestabilização que culminou com a queda do breve regime Nacional-Trabalhista de João Goulart (o Jango) e com o golpe militar de 1964, cuja violência repressiva era justificada com base em uma suposta revolução comunista que poderia ganhar espaço no país e que, portanto, legitimava seus ditames autoritários.
 
Apoiado em seu início pela CIA, o governo militar brasileiro fundamentou-se no anticomunismo e patriotismo burguês-chauvinista. Quanto à política externa, no final do regime, é verdade que houve, por motivos pragmáticos, uma relativa diversificação de parceiros intrnacionais buscando aliança com nações não-alinhadas, principalmente durante o governo do General Geisel nos anos 1970. Porém, no plano interno, o regime militar brasileiro não ofereceu um destino  promissor às comunidades orgânicas: pela via da repressão e do genocídio, indígenas das mais diversas etnias foram massacrados: Pataxós da Bahia infectados propositalmente pelo vírus da varíola, os Krenak do Maranhão tendo seus modos de vida arcaicos e tradicionais vinculados a patologias mentais e enviados em massa para reformatórios manicomiais pelos motivos mais torpes, etc etc. 
 
No plano da 2a Teoria Política (2TP), a questão identitária pode ser posta em outros termos. Grande parte da dificuldade em estabelecer uma identidade brasileira reside no fato de que as alianças geopolíticas do Brasil estabeleceram-se com grupos e nações que pouco têm em comum com nosso próprio destino histórico, como as nações anglo-saxãs (em alianças sempre desvantajosas), na mesma medida em que negligenciaram os laços hispano-ibéricos e latino-americanos. A identidade de uma nação está intimamente relacionada à identidade continental, e, de modo evidente, o Brasil configura-se a partir de uma síntese dual entre os países ibéricos (Espanha e Portugal) e as nações indígenas latino-americanas. Temos laços naturais muito mais fortes com essas nações do que com os anglo-saxões. 
 
Do ponto de vista das várias possibilidades de uma integração do próprio Brasil (ou dos diferentes Brasis) em um bloco supranacional, teríamos, assim, a proposta bolivariana, representada pelo projeto de Hugo Chávez acerca da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), projeto que potencialmente integraria o Brasil em um grande espaço pautado no antiamericanismo, no socialismo autóctone latino-americano e nas culturas locais de matiz indígenas e católicas.
 
Potencialmente, poderíamos ainda falar de uma integração continental entre todos os países da América Latina, tal como idealizada por Norberto Ceresole e por Alberto Buela (BUELA, 1999) ou até mesmo de outros projetos, como uma solução hispânico-imperial, baseada na reconstituição do Império de Filipe II e na pretensão de combater, ou até mesmo extirpar definitivamente, a influência inglesa no mundo ou pelo menos nesta parte do orbe (o Império versus o imperialismo, diria Evola). 
 
Em suma, independentemente do conteúdo político específico de cada proposta integracionista, a união continental e o reforço dos laços econômicos e políticos com as nações alternativas (especialmente com os regimes assistêmicos e antiimperialistas) significa, para o Brasil, não somente a sobrevivência econômica, mas a própria sobrevivência identitária.  
 
Entretanto, retomar e construir os laços identitários com estes dois grandes espaços exige uma ação de rompimento com o modelo geopolítico atual, o que requereria, primeiramente, agentes político-ideológicos capazes de levar esses potenciais projetos adiante, a despeito das interferências estrangeiras. Não dispomos, no momento, de tal instrumento político. O mais próximo de realizar essa tarefa, na atualidade, foi o Partido dos Trabalhadores (PT), de matiz social-democrata, único projeto de poder coerente em nível de 2TP no Brasil, mas que, sobretudo nos últimos tempos, adotou uma política de conciliação e acabou estabelecendo sua estrutura de ação através do comprometimento com as grandes oligarquias financeiras.
 
O grupo do BRICS, o qual justamente nos forneceria uma alternativa à clássica aliança com o bloco anglo-saxão, não foi ainda devidamente explorado pelo Brasil. A predileção pelas relações com os EUA mantém-se enquanto o BRICS permanece como escolha secundária. A manutenção dessa linha de política externa vem acompanhada de dois sacrifícios: o primeiro é o da própria emancipação econômica e produtiva; o segundo, o da perda gradativa da identidade cultural, substituída por uma cultura artificial de massas, alheia, externa, imposta, que se manifesta como violência étnica.
 
Nos últimos quatro anos do governo de Dilma Rousseff, por exemplo, os assassinatos no campo cresceram exponencialmente: lideranças indígenas, camponeses e até líderes religiosos locais tem sido mortos, nas áreas rurais do país, por latifundiários e pistoleiros (CANUTO; LUZ; COSTA, 2014). A taxa de suicídio entre as comunidades indígenas encontra-se hoje acima de média nacional – indicador que está diametralmente relacionado com a anomia, com a industrialização massiva de suas áreas e com a alienação da Terra, ou seja, é um problema de natureza identitária. Tudo isso ocorre sob os auspícios do projeto desenvolvimentista e tecnocrático adotado pelo atual governo de 2TP, que, na prática, consiste em desalojar comunidades regionais de suas moradias em prol da construção de indústrias e hidrelétricas.  
 
E quanto à 1a Teoria Política (1TP)? Ela teve seu auge no Brasil nos anos 1990 durante o curto governo de Collor (cassado), seguido pelo governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (FHC), estadista plutocrata que privatizou uma parte significativa dos setores econômicos nacionais e que tinha relações tênues com os órgãos deliberativos do globalismo – o Clube Bildeberg, a CIA e as fundações ligadas ao capital filantrópico, tais como a Fundação Ford, relações essas apropriadamente narradas pela historiadora britânica F. Stonor Saunders em seu Who Paid the Piper?. Durante esse período, a Política Externa esteve condicionada a uma visão estritamente economicista, seus defensores argumentando que o Brasil deveria reconhecer a hegemonia econômica dos países capitalistas avançados, como os EUA, o Japão e a Europa Ocidental. Assim, dever-se-ia construir uma sólida relação com estes países, pois seus mercados seriam essenciais para absorver as exportações brasileiras e seus capitais fundamentais para investimento na economia nacional. 
 
Porém, o processo de privatizações, reformas estruturais e o cumprimento de agendas internacionais, como a assinatura do Tratado de Não-Proliferação Nuclear em 1998 e a aceitação do projeto norte-americano de instituição da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) teve graves consequências: o baixo retorno financeiro internacional, a desnacionalização da economia, o aumento do custo de vida, desemprego e desigualdade social. Foi, aliás, esse quadro geral que abriu espaço para a emergência no Brasil de forças políticas e ideológicas carregadas de uma verve “nacional-desenvolvimentista” que advogavam uma política intensa de justiça e inclusão social. Foi nesse contexto que se deu a vitória eleitoral do já citado PT (presidente Lula em 2002, seguido por Dilma Rousseff do mesmo partido). 
 
Nosso objetivo, aqui, não é nada mais que o de corrigir o velho erro luso-brasileiro de preferir o domínio alienígena anglo-saxão/atlantista ao mesmo tempo em que nega a sua raiz ibérica, constante histórica que pode se ver em episódios como a Revolução de Avis e seu clímax na batalha de Aljubarrota, na qual prevaleceram os interesses da burguesia mercantil apoiada pelo Papa sobre a facção pró-espanhola, ligada à aristocracia. Note-se que era a Espanha (aliada à França), nesse momento, o reino de caráter mais feudal e a vitória da aristocracia teria sido um duro golpe para a classe mercantil. França e Espanha, em termos geopolíticos, representavam a Terra em contraposição ao Mar (Inglaterra, no caso tendo cooptado Portugal). Tal conflito pode ser lido sob a ótica do conflito espiritual entre guelfos e gibelinos, descrito por Julius Evola.
 
 Tais episódios fazem parte do processo histórico que fez de Portugal um dos primeiros Estados modernos da Europa, Estado esse que fundou um império ultra-marítimo. É essa Portugal que é cantada, em suas contradições, por poetas como Gil Vicente e Camões; uma Portugal dupla: nação das tradições, cristã, heróica e conquistadora e, por outro lado, nação moderna, mercantil e talassocrática. Nação profunda e nação burguesa. Uma gerou a Terra de Santa Cruz. A outra, o pau-brasil.
 
Aparentemente, prevaleceu por aqui a falsa Portugal, a Portugal inglesa. É nessa última que a nascente nação brasileira, feita em Império, espelhou-se ao trilhar o caminho do endividamento com a Casa dos Rothschild quando buscava financiamento para esmagar as revoltas regionais no período da Regência; ao, juntamente com Albion, travar a guerra com a nação irmã paraguaia e ao massacrar a comunidade camponesa católica de Canudos, batizando com esse sangue a nascente República.
 
Tal é o saldo de séculos de guerras fratricidas no contexto do processo histórico da nossa construção da modernidade para forjar uma identidade nacional iluminista. O custo dessa empreitada colossal traduz-se na idéia de atraso, eclipse histórico: uma nação que poderia ser a Heartland contrahegemonica, pólo de um levante latino católico e contrarrevolucionário que abalaria as fundações do mundo moderno. Mas assim não foi.
 
Existe o projeto, nunca realizado, de um Brasil moderno, para inglês ver, no dizer popular. E existem ou jazem, no estratos profundos, vários Brasis reais, enclaves ou ilhas. O pensamento social e as classes dirigentes constroem discursiva e juridicamente o primeiro, por cima das forças arcaicas dos Brasis profundos –  pluriverso de sertões nordestinos, pampas, ribeirinhos amazônicos e Cerrado, rodeados por cidadezinhas rurais, cidades litorâneas, metrópoles e megalópoles. Essa configuração forma uma teia hierarquizada que é a face contemporânea do Brasil arqueomoderno, no dizer duguiniano. Quais caminhos se vislumbram? 
 
Um possível caminho a ser traçado com base na multipolaridade necessariamente levará em conta alternativas como o já citado grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O BRICS diz respeito não apenas a brasileiros, russos etc, como concerne a todas as pessoas do mundo. Aqui é necessário um pensamento geopolítico.
 
Se, como vimos, as características identitárias brasileiras necessitam, para sua sobrevivência, de ação, praticidade e de um projeto político, não é menos verdade que tais coisas necessitam de uma referência que as guie. Há uma interdependência entre sobrevivência identitária e projeto político, projeto esse que requer algo no qual se pautar – o “interesse nacional’’. O termo, consagrado na literatura geopolítica, pode parecer vago ou insuficiente para nossos propósitos, mas a missão da geopolítica reside basicamente em produzir uma leitura fiel do interesse nacional, ou em outras palavras, apreender a essência da população com a qual lida, para que esta essência aponte os rumos que as políticas interna e externa devem traçar. 
 
No campo da política externa, a construção de um mundo multipolar coloca-se assim como o grande parâmetro a ser buscado. A multipolaridade, em termos geopolíticos, pode fornecer maior estabilidade ao sistema internacional, uma vez que o equilíbrio na balança de poder faz com que ataques sejam altamente custosos a quem ataca (em razão da possibilidade de contra-ataques igualmente poderosos). Entretanto, a estabilidade do sistema internacional não é, em si, a única razão para a busca de tal parâmetro, já que é possível argumentar que um mundo bipolar poderia ser igualmente estável, pois também conteria o equilíbrio de forças. Dessa forma, a peculiaridade que o mundo multipolar fornece é que esse equilíbrio de forças ocorreria ao mesmo tempo em que um certo número de pólos de poder manteriam sua soberania e autonomia, isto é, manter-se-iam fiéis a real essência de sua população (DUGIN, 2012).
 
Assim, a construção da multipolaridade significa, para o Brasil, independência e autonomia em um mundo estável, algo um tanto diferente daquilo que foi vivenciado na Guerra Fria, na qual se podia até admitir existir uma certa estabilidade no sistema internacional, porém a real autonomia e independência brasileira estavam, naquele período, cerceadas pelos EUA, potência que definia de fato os parâmetros de ação do mundo ocidental. Um mundo multipolar oferece ainda uma maior disponibilidade de opções para forjar alianças, acordos, tratados e arranjos internacionais, o que aumentaria o poder de barganha brasileiro, permitindo que o Brasil se encaixasse nos arranjos que melhor refletissem seu interesse nacional.
 
A semente de uma projeção rumo à multipolaridade na Política Externa brasileira foi lançada a partir do governo do presidente Lula do PT (2003 – 2010).  Os  princípios que guiaram a política do PT remetem àqueles do início dos anos 1960, nos governos dos presidentes Jânio Quadros e do esquedista João Goulart (“Jango”); retomados, note-se, na fase madura do mesmo regime militar que depôs Jango, no governo do presidente Ernesto Geisel nos anos 1970 (Gonçalves, 2010). 
 
Na busca brasileira por um mundo multipolar exece papel fundamental o já citado grupo dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que surgiu com um caráter bastante informal. Foi citado inicialmente em um estudo do economista Jim O’Neill como o próximo grupo de países a ter grande ascensão econômica e aos quais seria interessante agruparem-se a fim de coordenar seus objetivos comuns.  É digno de nota que a iniciativa de criação do grupo de caráter informal BRIC (que deu origem ao BRICS) partiu em grande parte da Rússia e Brasil, como relata o então chanceler do Brasil Celso Amorim.
 
O primeiro ponto a se destacar é o status que o BRICS projeta internacionalmente. Os países membros do BRICS vêem-se e projetam-se como potências emergentes. Não como futuras potências imperialistas, que teriam como único objetivo ganhar poder, e sim como representantes de boa parte das reivindicações do Sul geopolítico. Nesse espírito, uma das metas do BRICS é criar alternativas ao modelo das instituições financeiras internacionais, tais como o Fundo Monetário internacional (FMI) e o Banco Mundial (COOPER e FARROQ, 2015). O status internacional que o grupo dos BRICS fornece permite que se crie um contraponto à ordem vigente; que exista uma opção a qual o mundo de menor desenvolvimento possa apoiar como projeto de uma nova ordem internacional. 
 
A ordem vigente, formada pela relação de poderes do pós-segunda guerra mundial, é uma ordem caduca, não mais capaz de representar a real distribuição de forças do mundo atual. Assim, embora o BRICS ainda não advogue o rompimento com tal ordem, busca uma reforma que traga mais justiça aos países emergentes e em desenvolvimento, adquirindo assim também forte importância simbólica – importância essa que cada vez mais deixa de ser somente simbólica para transformar-se em uma liderança real na busca da multipolaridade.
 
A informalidade dos BRICS, poder-se-ia alegar, representaria uma fraqueza em sua solidificação. Porém, como argumentam Cooper e Farooq, essa fraqueza pode, em verdade, ser sua força. O caráter informal é justamente a maleabilidade que permite que o BRICS não seja obrigado a tratar de todos os temas, tendo maior enfoque nos objetivos em comum. Se se tentasse incialmente tratar as mais diversas pautas em uma estrutura rígida e formal, tornar-se-ia um tanto difícil alcançar consenso e cooperação. A informalidade abre espaço para unir esforços nos pontos de convergência, respeitando o tempo necessário para que se alcance maior formalidade conforme a consonância de interesses aumente. Ao mesmo tempo, o pequeno quadro de membro do BRICS torna mais dinâmica a construção do consenso (COOPER e FARROQ, 2015). Se é verdade que mesmo entre 5 países coordenar ações não é tarefa fácil, em um grupo que fosse formado por um número muito grande de países, seria de se esperar que houvesse lentidão e imobilidade de ações, pois as divergências seriam extremamente trabalhosas e tomariam muito tempo para se resolver. 
 
Contudo, é preciso lembrar que o pequeno número de membros não significa a exclusão dos países não membros. Na cúpula de Fortaleza foi explicitada a intenção do BRICS de ter relações cada vez mais sólidas com a América do Sul, África e Ásia de maneira geral. Dessa forma, é razoável pensar que os BRICS podem fazer um papel de ponte e coordenação de diversas organizações Sul-Sul, tais como Mercosul, Unasul, União Econômica Eurasiática, Organização para Cooperação de Xangai (SCO) e a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). De qualquer forma, não há razões para rejeitar a ideia de inclusão de novos membros, pois conforme o grupo se solidifica e vive uma nova realidade, abre-se espaço para novas possibilidades. O BRICS pode vir a ser uma das pedras fundadoras de uma nova ordem internacional.
 
Finalmente, é importante ressaltar o grande salto que foi dado pela formação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) do BRICS. O NBD, após algumas disputas internas (como a da China e Índia em busca da sede do banco), finalmente está em processo de conclusão e terá um capital inicial de 50 bilhões de dólares, buscando financiar projetos de engenharia pesada no mundo em desenvolvimento (BRICS. ITAMARATY, 2014). O banco tem uma estrutura de poder equitativa e busca ser uma opção para diminuir a dependência das fontes tradicionais de financiamento, demonstrando intuito em atender também países não membros. Além disso, formado pelo BRICS, o Arranjo de Contingente de Reservas (no montante de 100 bilhões), permite uma maior estabilidade, estabelecendo-se como um instrumento para lidar com crises de liquidez, muitas vezes oriundas dos EUA e Europa. 
 
A posição brasileira nesse processo é um tanto peculiar. O Brasil está em posição sensível para tratar da relação dos BRICS com a América Latina, ou, em outros termos, dar sustentação para a forma com que a América Latina enquadrar-se-á nessa nova ordem que anseia pela multipolaridade, pela autonomia e pelo respeito às identidades. 
 
Na esfera da política interna, o cenário político brasileiro neste início do segundo mandato da presidente Dilma Roussef (do PT) tem sua estabilidade comprometida de uma forma não vista desde os anos 90. As dificuldades de Roussef tiveram início já antes do último pleito e, tendo vencido por uma margem apertada o candidato do neoliberal Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a presidente se deparou com uma situação bastante delicada: uma base que vinha gradualmente se rebelando, um Congresso hostil, os efeitos da crise finalmente se fazendo sentir no Brasil e sucessivos escândalos de corrupção envolvendo o seu partido, exaustivamente anunciados de bom grado pela mídia mainstream, são algumas das preocupações que rapidamente se lançaram sobre o governo empossado.
 
Na tentativa de tranquilizar os ânimos, Roussef já começa o mandato em flagrante contradição com o discurso usado em campanha, nomeando uma conhecida defensora dos interesses da Monsanto no país e representante da criminosa oligarquia rural como Ministra da Agricultura (Kátia Abreu – PMDB), e ninguém menos que Joaquim Levy como Ministro da Fazenda – doutorado em Chicago, durante sua atuação no FMI, entre 1992 e 1999, Levy foi um dos arquitetos dos programas de austeridade que levaram nações como Espanha, Portugal e Irlanda para o buraco na década seguinte. Seguiu-se uma série de medidas impopulares, como o ajuste fiscal que cortou bilhões em verbas públicas de diversos setores para alimentar o saco sem fundo da dívida pública, garantindo lucros recordes aos banqueiros.
 
A conciliação da elite do PT (2TP) com os interesses dos bancos e do capital especulativo internacional exemplifica como o Brasil aproxima-se da fase pós-liberal de sua história, confirmando os prognósticos de Dugin no livro "A Quarta Teoria Política" e comprovando os fenômenos e processos histórico-ideológicos descritos na obra.
 
De qualquer forma, o establishment e interesses atlantistas não estão plenamente satisfeitos. O PT continua lhes causando alguma desconfiança e, com a polarização das últimas eleições, estiveram perto demais de otimizar as condições políticas para execução de suas intenções por aqui. Além disso, as manifestações massivas ocorridas em junho de 2013 mostraram que existe terreno fértil no Brasil para uma manobra mais arriscada, de forma que no momento atual assistimos, não sem algum assombro, à escalada do golpismo da direita liberal. 
 
O descontentamento com relação ao governo Dilma (governo que, note-se, conta com Levy conduzindo a economia) está presente em amplos setores: dos votantes de Aécio Neves, candidato psdbista derrotado, às esquerdas, dos sindicatos e trabalhadores desiludidos com as políticas de arrocho aos acadêmicos que tiveram seus programas de bolsa cortados; de modo que são relativamente poucos os que ainda se dispõem a sair em defesa do governo. 
 
Buscando instrumentalizar essa insatisfação geral, movimentos liberais recém-surgidos e devidamente financiados por organizações americanas como a  Atlas Network e a rede dos irmãos Koch, espalham ostensivamente propaganda anti-petista por meio das redes sociais visando trazer as pessoas às ruas para pedir a saída de Roussef. O que se vê são manifestações despolitizadas “contra a corrupção” ou ainda a reação da classe média a uma propaganda conspiratória construída, segundo a qual todas as nações latino-americanas que têm se engajado num esforço contrahegemônico seriam, na verdade, parte dum movimento comunista mancomunado com a esquerda internacional e com a promoção de agendas contra a família e religião. O irônico é serem justamente os EUA os principais promotores internacionais de tais movimentos e das revoluções coloridas como mecanismo de homogeneização econômica, social e cultural, impondo valores ocidentais (Huntington) como padrão ideal.
 
A verdade é que é natural a insatisfação popular com as lideranças petistas. É fato que nos tempos do presidente Lula houve vários avanços, como uma política externa que colocou o Brasil em uma posição de mais soberania e ainda melhorias significativas para a população mais pobre, com a implantação de programas sociais. Rousseff, sua sucessora, não logrou aprofundar esses pontos e foi forçada a ceder terreno. O Brasil continuou acomodado em seu lugar de exportador de commodities, sem grande esforço para o fortalecimento da indústria, nenhum projeto educacional e cultural que provesse a nação de sentido próprio, grande descaso com a defesa nacional e, além disso, a servidão aos mercados e aos credores só fez alimentar ainda mais a sanha destes. O plano educacional proposto pelo governo de Rousseff consiste basicamente na promoção do American Way of Life como paradigma de construção de nação. A grande obra dos governos de Lula e Rousseff, afinal, é a sua contribuição para a construção do Banco do BRICS. Essa ficará para a posteridade.
 
Diante disso, a principal questão que se coloca para nós brasileiros é determinar que instrumentos restam para permitir uma interpretação mais autêntica e orgânica do Brasil e lançar as bases para um projeto civilizacional que não padeça das mesmas vicissitudes de todos os projetos nacionais prévios? Pensamos que poucos países precisam tanto dos instrumentos gnoseológicos da 4TP quanto o Brasil. A busca pela concretude presente e orgânica de cada povo (ethnos, narod, Dasein/Mitsein) como sujeito político é o que permitirá estabelecer o Brasil como uma casa de vários povos, várias nações interligadas, organicamente coligadas, mas, contudo, autônomas. Unidade na multiplicidade – pluralidade para um destino comum. Separação voluntária em um espaço comum. No mesmo espírito em que escreve Julius Evola acerca da necessidade de uma Jihad interior e uma Jihad exterior, o Brasil precisa de uma luta interna contra uma forma de imperialismo cultural que nasce dentro do próprio país e busca padronizar e nivelar todas as culturas que habitam este território. O Brasil, em suma, precisa de uma multipolaridade interior. E essa luta interna pelas identidades dos povos é a condição de possibilidade que permitirá ao Brasil situar-se também perante os outros povos do mundo como baluarte e exemplo das múltiplas possibilidades da 4TP, bem como de sua superioridade sobre as três teorias políticas modernas anteriores.