REVOLUÇÃO FARROUPILHA 1835-1845: A DESCONSTRUÇÃO DE UM MITO E UMA ANÁLISE QUARTO-TEÓRICA

A CONSTRUÇÃO DO MITO

Todos os povos possuem seus mitos, crenças construídas em cima de alguém ou algo, uma narrativa portadora de um teor fantástico ou simbólico. Sendo importante sabermos distinguir o quanto de verdade estes mitos carregam. No caso da revolução farroupilha, o conflito entre a província de São Pedro do Rio Grande do Sul contra o Império do Brasil, é possível vermos que até hoje uma determinada percepção sobre o que foi e o que ela representou permanece viva, percepção esta muitas vezes um tanto romantizada ou mesmo idílica. Conforme o historiador Cesar Augusto Junglblut:

[...] como um evento regional, até hoje enseja discussões, paixões e até brigas entre seus defensores e detratores.
É comum encontrarmos, mesmo na historiografia regional produzida no Rio Grande do Sul, distorções no seu entendimento. Alguns estudiosos fazem apologia dos heróis e condenam os traidores, outros tentam desmistificá- los. Discussões sobre o caráter separatista ou não do movimento geram até hoje posições apaixonadas ou constrangedoras para a problemática da identidade regional e nacional. (JUNGBLUT, 2011, p. 125)
O mito se fundamenta em uma ideologia, a qual é produzida hegemonicamente pela elite. A visão que se tem é fundamentada basicamente nas ideias dominantes, que, conforme veremos na revolução farroupilha, eram de uma fracção muito pequena e beneficiária. Na análise do historiador e jornalista Tau Golin:
A ideologia, por conseguinte, liga-se a uma concepção ou visão de mundo de uma classe, que reflete aspectos da realidade objetiva e formula conceitos sobre ela a partir dos interesses dessa classe. Como concepção de mundo da classe dominante, a escala de valores desta classe se impõe sobre o conjunto da sociedade, apresentando-se como a verdadeira expressão da realidade. A ideologia da classe dominante, hegemónica,
manifesta-se em todas as atividades económicas, sociais, políticas, intelectuais e culturais. (GOLIN, 1983a, p. 12, 13)

Para Golin (1983a) a ideologia embasadora para o desenvolvimento e manutenção do mito em torno da revolução farroupilha se fundamenta em concepções positivistas da elite republicana, detentora do poder durante toda a República Velha. Esta que se origina na revolução farroupilha visando exaltar feitos e heróis, ao passo que esconde seus aspectos negativos e contraditórios. O historiador e jornalista Juremir Machado da Silva questionado sobre como se deu a construção deste mito, aponta:

São várias etapas. Uma delas é quando Júlio de Castilhos e os republicanos positivistas estão trabalhando pela construção da República no Rio Grande do Sul. Júlio de Castilhos vai estudar direito em São Paulo e manda uma carta dizendo que é preciso estudar aquela guerra civil, porque ela poderia servir de fundamento para o que hoje nós chamaríamos de construção de uma identidade regional. Na época, a Revolução Farroupilha era chamada de guerra civil. Esses republicanos positivistas tinham bem a noção de que uma identidade se constrói a partir de um mito fundador. Então era preciso uma mitologia épica para construir essa unidade. Isso foi fartamente explorado. Depois, historiadores como Varela e Alfredo Ferreira Rodrigues ajudaram a construir uma ideia épica de revolução, influenciados pela perspectiva histórica dominante no século XIX. Nos anos 1930, os militares ligados ao Instituto Histórico e Geográfico fazem, em plena Era Vargas, uma recuperação dos fatos com interesse cívico de engrandecimento das atitudes militares. O interessante é que a Revolução Farroupilha foi feita por militares e escrita por militares. (SILVA, 2012, n.p.)

Nesse contexto a historiadora Sandra Jatahy Pesavento compreende, então, que no mito há uma função orgânica a partir da qual o interesse era justificar o predomínio e a hegemonia de uma classe em determinado momento. O mito romantiza a estrutura que se apresentava na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, onde supostamente poderíamos nos deparar com uma “democracia dos pampas” e com a “ausência de classes”, uma sociedade democrática e igualitária, na qual eclodiu uma revolução visando liberdade, tanto no campo político, como económico, estando nela engajados diversos setores da sociedade. Em tal visão emana uma tendência “positivista-idealista”, que almejava legitimar e propiciar coesão ao sistema de dominação que se encontrava presente na época, além da hegemonia do grupo agropecuarista na sociedade civil gaúcha (PESAVENTO, 1990).
Essa idealização é passível de análise em trabalhos de historiadores como Spalding (1980), Laytano (1983) e Fagundes (1985), com destaque ao escritor Filho (1958), onde podemos ler trechos de seu trabalho exaltando a revolução e determinadas figuras, relacionando inclusive o farroupilha com o espartano e superestimando Bento Gonçalves da Silva. Sob um olhar crítico, conforme Golin (1983b) e Silva (2018) é possível enxergar que houve dentre os farroupilhas, ladrões, degoladores, estupradores, e até agiotas. Há ainda a figura heroica de Bento Gonçalves da Silva desconstruída, referenciando-o como um ditador, escravagista, contrabandista e ladrão. Em vista desta romantização criada, é necessário ir além. Para que se torne possível a desconstrução desse mito, ou podemos dizer a análise realista e não simbólica-romantizada da revolução farroupilha, buscamos a seguir compreender as raízes e o contexto histórico que norteará a proposta interpretativa.

RAÍZES E O CONTEXTO HISTÓRICO

Antes da eclosão do conflito em 1835, a relação entre a província de São Pedro do Rio Grande do Sul e o Império do Brasil era instável em diversos pontos, relação fundamental para que possamos compreender os acontecimentos vindouros. Podemos defini-la como uma relação de periferia versus centro, pois para o Império a região possuía unicamente o atrativo económico e uma função estratégico-militar, características apontadas em virtude da colaboração da região como abastecedora do mercado interno e pilar essencial na defesa das fronteiras. Por conta disso a região então reivindicava mais autonomia e mais respeito no que se refere ao tratamento que recebia. O descaso é evidente, constatado em trabalhos de diversos historiadores como Fausto (2006), Filho (1958) e Pesavento (1990). A província, detentora de uma economia tida unicamente como subsidiária em relação à economia central de exportação, desde muito tempo se posicionava contra os pesados impostos. Reivindicava-se, portanto, uma política tributária que assegurasse condições justas para que a província produzisse e vendesse seus produtos. Uma política que protegesse o produtor local. Outra problemática que se apresentava diz respeito à imposição por parte do centro, que definia o quanto do montante arrecadado na província iria para a corte (referência à subordinação económica). É importante darmos um enfoque nas condições que se apresentavam na região. O historiador Boris Fausto diz:

O Rio Grande do Sul era um caso especial entre as regiões brasileiras desde os tempos da Colónia. Por sua posição geográfica, formação económica e vínculos sociais, os gaúchos tinham muitas ligações com o mundo platino, em especial com o Uruguai. Os chefes de grupos militarizados da fronteira - os caudilhos -, que eram também criadores de gado, mantinham extensas relações naquele país. Aí possuíam terra e se ligavam, pelo casamento, a muitas famílias da elite.
Por outro lado, a economia rio-grandense, do ponto de vista da destinação de seus produtos, estava tradicionalmente vinculada ao mercado interno. Era um centro de criação de mulas que teve um importante papel no transporte de mercadorias, no Centro-Sul do país, antes da construção das ferrovias. No período do renascimento agrícola das últimas décadas do século XVIII, colonos vindos dos Açores plantaram trigo, consumindo sobretudo no Brasil. Quando se deu a independência do país, esse período de expansão do trigo já se encerrara, devido às pragas e a à concorrência americana.
A criação de gado se generalizou, assim como a transformação da carne bovina em charque (carne-seca). O charque era um produto vital, destinado ao consumo da população pobre e dos escravos do Sul e do Centro-Sul. Criadores de gado e charqueadores formavam dois grupos separados. Os criadores estavam estabelecidos na região da Campanha, situada na fronteira com o Uruguai. Os charqueadores tinham suas indústrias instaladas no litoral, nas áreas das lagoas, onde se concentravam cidades como Rio Grande e Pelotas. Criadores e charqueadores se utilizavam de mão-de-obra escrava, além de trabalhadores seus dependentes. (FAUSTO, 2006, p. 91).

Com esse cenário, portanto, entende-se que as causas profundas da revolução farroupilha é justamente - e fortemente, de natureza económica. Exemplificando um pouco mais, Filho (1958) nos diz:

De fato, a economia rio-grandense passava por grave crise. Pesados tributos recaíam sobre as atividades dos fazendeiros. [...].
O nosso charque, sobrecarregado de impostos, não suportava a esmagadora concorrência do produto platino nos próprios centros consumidores brasileiros.
Os fazendeiros gaúchos tinham sofrido enormes prejuízos na última guerra, sem que recebessem indenização alguma.
E, a par de tudo isso, agravando ainda mais o desgosto dos rio-grandenses, o completo abandono em que jazia a Província, onde não se realizava nenhuma obra de utilidade pública. Os quartéis eram pardieiros praticamente inabitáveis. Não se construía um palmo de estrada; não havia uma ponte nos rios. Não se construía uma escola. (FILHO, 1958, p. 76)

A cobrança de uma taxa extorsiva sobre o charque gaúcho no começo da década de 30, além do aumento da taxa de importação de especiarias, como o sal, essencial para a fabricação do charque, foi motivo de insatisfação para um setor da elite gaúcha. Algo costumeiramente levantado como uma das fortes razões da revolta, embora não possamos ignorar os demais fatores (JUNGBLUT, 2011). Pode- se ainda mencionar a inflamação do ambiente, criada em virtude das acusações contra um nome influente e importante dentro da província, Bento Gonçalves da Silva, acusado de conivência com caudilhos platinos, além de professar ideias republicanas. Bento Gonçalves era tido como um herói para o povo rio-grandense, um militar de carreira que havia participado ativamente nas campanhas na Banda Oriental desde 1811. As acusações contra ele não foram bem recebidas, desencadeando uma revolta contra o presidente da província Fernandes Braga e o comandante de armas Sebastião Barreto Pereira Pinto (FILHO, 1958; PESAVENTO, 1990). Aqui, uma subordinação política também deve ser observada, já que o centralismo monárquico era quem nomeava os presidentes da província, além de que há o fato de os conselhos provinciais terem apenas um caráter reivindicativo, sem poder de legislar, sendo rara às vezes que seus reais interesses eram atendidos - embora isso viesse a mudar como veremos logo à frente. (PESAVENTO, 1990). Quanto ao centralismo tão criticado, nota-se uma pequena contradição, já que justamente no período regencial foi que certa autonomia começou a se desenhar nas províncias.
Quando se sabe que muitas das antigas queixas das províncias se voltavam contra a centralização monárquica, pode parecer estranho o surgimento de tantas revoltas nesse período. Afinal de contas, a Regência procurava dar alguma autonomia às Assembleias Provinciais e organizar a distribuição de rendas entre o governo central e as províncias. Ocorre porém que, agindo nesse sentido, os regentes acabaram incentivando as disputas entre elites regionais pelo controle das províncias cuja importância crescia. Além disso, o governo perdera a aura de legitimidade que bem ou mal tivera enquanto um imperador esteve no trono. Algumas indicações equivocadas para presidente da província fizeram o resto. (FAUSTO, 2006, p. 89)
Constatamos os dizeres acima analisando o ato adicional de 12/08/1834, que transformava os conselhos citados anteriormente em Assembleias Legislativas, podendo elaborar leis sobre assuntos civis, judiciais e eclesiásticos, concedendo a tão debatida e reivindicada autonomia às províncias (FLORES, 1994). Outro ponto muito levantado como um dos fatores motivadores para a revolução é a questão identitária, presumindo que havia uma não identificação da província com o restante do Brasil, criando-se assim um sentimento de nacionalismo próprio. Tal argumento se fundamenta pela visão idílica que se criou do período e da revolução. É fato que havia uma proximidade da Província com o mundo platino, por vezes muito mais próximo do que com outras regiões do Império. Muitos elos socioculturais são passíveis de constatação, porém, embora se apresentasse como diferente, a população da província não se sentia menos brasileira. Conforme Jungblut (2011) os anseios e particularidades da província não foram de fato respeitados pelo poder central, o que pode consequentemente e de forma natural gerar uma conscientização para com a sua situação de abandono e o surgimento de uma espécie de nacionalismo, mas que não anula a brasilidade existente. O argumento da questão identitária se torna justa se for compreendida nesse sentido, caso contrário caminharemos rumo ao saudosismo exacerbado e à desonestidade intelectual.
Embora houvesse todo um contexto que fundamenta a revolução, é necessário lembrar que ela não almejava em seu início uma separação do Império do Brasil. A instituição da República Rio-Grandense não era o objetivo principal e ocorre devido às circunstâncias que vão se apresentando, embora houvesse entre os rebeldes uma ala separatista. Historiador Moacyr Flores em entrevista:

Pretendiam uma federação de províncias autónomas. Não era a separação. É claro que, quando viram que os outros não tinham acompanhado, só restava proclamar a república para continuar a luta. Havia um grupo pequeno, chamado de farroupilha, que queria a separação desde o início. No projeto de Constituição de 1842, em Alegrete, aparece a ideia de que as províncias se federalizem ao Rio Grande. Para eles, a federação permitiria que os Estados tivessem leis próprias. (FLORES, 2012, n.p.)

Podemos constatar em trabalhos de historiadores e no próprio manifesto assinado por Bento Gonçalves, onde de forma transparente é demonstrado, além de diversas motivações, que o interesse principal e inicial se encontrava na substituição do presidente da Província e do comandante das Armas. (FILHO, 1958; FLORES, 1994, PESAVENTO, 1990; SILVA, 2018). Interpretando a base do que foram as raízes e o contexto histórico, é importante compreender os fundamentos que colaboraram de forma significativa para o desencadeamento do conflito que viria a seguir.

OS FUNDAMENTOS LIBERAIS DA REVOLUÇÃO

Podemos constatar que os fundamentos liberais foram base para o desencadeamento da revolução farroupilha, algo comum dado o contexto da época. Veremos que o Império do Brasil no período regencial enfrentou diversas dissensões políticas, entre liberais federalistas e os conservadores unitários. Já em vista disso, podemos ver que este é mais um dentre os diversos episódios de revoltas ocorridas ao longo de nossa história. Exemplo de outras revoltas ocorridas neste período são a Cabanagem no Pará (1835-1840), a Sabinada na Bahia (1837-1838) e a Balaiada no Maranhão (1838-1840), exemplos que nos possibilitam ver que todos ocorrem em um mesmo período, ou ao menos em um espaço de tempo muito próximo (FAUSTO, 2006). Naquele contexto o liberalismo estava derrubando estruturas antigas, fundamentadas nos monopólios e regimes absolutistas, algo que não demonstrava retroceder, pelo contrário (JUNGBLUT, 2011). O liberalismo, que fundamenta a revolução farroupilha, conforme Moacyr Flores:

[...] é a concepção de uma política, baseada na liberdade individual dentro da lei, iniciada na Inglaterra no século 17 e continuando até o século 19, que inspirou os movimentos revolucionários europeus e se transformou em base da tradição política norte-americana. (FLORES, 1994, p. 23)

Uma visão mais crítica quanto ao liberalismo é a do sociólogo Alain Soral, que o compreende como uma superação da velha hierarquia social fundamentada na linhagem, caminhando para a construção de uma hierarquia agora fundamentada predominantemente no poder do dinheiro. Apesar de no campo abstrato falarmos de um projeto humanista, o alcance da fraternidade universal, através da liberdade, igualdade e da razão, falamos também da ascensão de uma elite, que através do liberalismo encontra a oportunidade de exercer um duplo domínio. Quando falamos em liberalismo, é tanto ao aspecto da política, como ao económico (SORAL, 2011). No exemplo da revolução farroupilha é a elite agropecuarista quem busca se sobrepor ao domínio exercido pelo Império do Brasil. É sobre tal lógica liberal, que Soral nos fala, ela fundamenta o surgimento de toda a mitologia revolucionária criada, complementar ao que foi abordado inicialmente.
Para fins de justificar a sublevação contra o poder central, os rebeldes se fundamentaram em ideias de pensadores como Locke, Montesquieu e Rousseau. Por representar um pensamento que surge dentro de um contexto europeu, as ideias foram selecionadas e adaptadas não somente ao contexto que se apresentava, mas também aos interesses e problemas locais. Havia um sentimento de ameaça no que se refere à propriedade e a soberania dos rio-grandenses, assim se recorreu ao princípio de legitimidade de Locke, e para isso caminham rumo à ideia de federalismo, crendo em Estados independentes, que levassem em conta suas necessidades locais, mas que entretanto, mantivessem um laço de federação. Os rebeldes defendiam a adoção de um governo constitucional, fundamentando-se na ideia de divisão de poderes de Montesquieu. Quanto a Rousseau, muito se adaptou as ideias no que se refere o respeito às liberdades individuais e os direitos do cidadão (PESAVENTO, 1990). A revolução pode ser compreendida, portanto, como liberal, levando em conta também a mudança na estrutura de governo. Embora que por um período apenas, de 1836 a 1845, nos deparamos com a instituição de um governo, em tese, republicano (FLORES, 1994).
É necessário, contudo, ir a fundo na questão, conforme nos apresenta a historiadora Simone Maria Zago, ainda que fundamentada no pensamento político clássico do século XVII e XVIII, a justificativa de sublevação leva em conta o contexto, os interesses e os problemas locais, como mencionado anteriormente. Assim, o liberalismo sustentado pelos rebeldes assumirá características próprias, conseguindo, mesmo que contraditoriamente, conciliar os princípios básicos, citados anteriormente, com a escravidão, ou seja, um liberalismo conveniente aos interesses de uma pequena elite (ZAGO, 2005). Justamente por isso, mais a frente, se propõe analisar mais criticamente esta questão, sabendo separar o campo teórico do campo prático, ou seja, o que se pretendia e o que de fato é posto em prática. Porém, partimos agora para a análise da estrutura social existente na província.

ANTAGONISMO SOCIAL E A QUESTÃO ESCRAVOCRATA

Diferente dos senhores de outras regiões, os senhores do sul tinham padrões de vida menos luxuosos, mais modestos e costumes menos refinados, fato que não anula a existência de conflitos sociais e de mecanismos de dominação na sociedade gaúcha. A verdade é que os meios de produção da atividade fundamental da economia da região na época, ainda se encontravam nas mãos de uma elite agropecuarista, a qual exercia sobre seus subordinados uma forma de subordinação muitas vezes pautada na violência. Falamos de uma sociedade militarizada, dos senhores de terra, gado e escravocrata, algo diferente do que se tenta construir equivocadamente, como sendo uma sociedade com a inexistência de conflitos sociais e de mecanismos de dominação. Mesmo que diferente de outras regiões em alguns aspectos, as estruturas de dominação eram basicamente as mesmas, sendo elas existentes e inegáveis (PESAVENTO, 1990).
Olhando para a zona rural, por exemplo, vemos que o que predominava era o desemprego: peões sem condições de sustentar uma família, vivendo com salários miseráveis e dependentes de seus patrões, proprietários de terras enormes que eram verdadeiros desertos no que se refere à ocupação. Este fator foi extremamente importante durante a revolução, pois é através da necessária fidelidade que muitos combatentes foram recrutados, em sua maioria negros e índios. Flores (1994) nos propicia um interessante desenho da pirâmide social existente na Província, com base em anúncios e artigos de jornais da época, percebe-se que em seu topo encontravam-se militares, estancieiros, exportadores e importadores justificando sua posição em virtude de possuírem riqueza e poder. À medida que descemos na análise da pirâmide há homens livres, que ocupavam seções média ou inferiores na estrutura social, tendo de enfrentar a concorrência do trabalho escravo e dos estrangeiros mestres-de-ofício. Restava ao homem livre aguardar por uma nomeação para cargo público, sentar praça no exército ou seguir carreira militar. E na base da pirâmide o escravo se submetendo às mais variadas funções. A forma como se apresenta a estrutura social, fez com que os rebeldes fossem dirigidos por uma elite.
Conforme o historiador Jorge Euzébio Assumpção, a província era extremamente escravocrata. A mão-de-obra escrava era fundamental para a economia local, e conforme censo de 1814, a província era composta por mais não- brancos - somando indígenas, escravos, negros libertos e recém-nascidos - do que por brancos, dados fundamentais para compreendermos a sociedade e estrutura da época. Na cidade de Pelotas, por exemplo, a mais rica e produtiva da Província, os trabalhadores escravizados eram maioria, em virtude das charqueadas, onde o escravo era quem desempenhava a mão-de-obra (ASSUMPÇÃO, 2016).
Em Silva (2018) de fato percebemos que havia uma proporção alta de não- brancos entre a população da província na época. No caso de Pelotas, se encontrava principal centro charqueador da província, contando com mais de cinco mil escravos. A posterior participação de escravos ocorre, conforme Chiavenato (1988) e Pesavento (1990), muito mais em virtude de necessidades de guerra, do que propriamente por uma questão emancipatória, embora não possamos negar que os escravos adentraram nas fileiras dos farroupilhas com a esperança de libertação. Conforme Silva (2018), embora houvesse um número considerável de escravos na província, a sua adesão, apesar de ter ocorrido, não foi tão significativa em números. Sobre os já libertos:
Aos negros já libertos da Província rebelde, depois de implantada a República em 1836, o discurso era ligeiramente diferente, embora não menos generoso e eficaz: se desertassem ou fugissem para o inimigo, voltariam a ser escravos. Sem dúvida, como prova a teoria do cálculo do menor dano a si mesmo, a tentação de arriscar a vida pelos estancieiros insurretos se via fortalecida no coração de cada negro. Era só uma questão de como viver ou morrer. (SILVA, 2018, p. 43)
De acordo com Silva (2018), os negros nas mãos dos farrapos eram inocentes, úteis desde que se mantivessem “adestrados”, assim como serviram como ferramentas nas charqueadas e estâncias, serviram também naquele momento como armas em um conflito, que na realidade não os representava. Em entrevista, Juremir Machado da Silva aborda novamente esta questão:

Eles prometeram liberdade para os negros dos adversários que aceitassem ser incorporados como soldados. Era uma forma de atrair mão de obra militar. Mas os escravos dos próprios farroupilhas continuaram nas fazendas trabalhando para que eles pudessem fazer a guerra. Quando a Revolução acabou e eles voltaram para casa, continuaram escravistas [...]. Quando fizeram, em Alegrete, o texto da Constituição, ela não previa a libertação dos escravos. Se eles tivessem vencido e a Constituição entrado em vigor, o Rio Grande do Sul continuaria sendo uma sociedade escravista. Eles não tinham nada de abolicionistas. Claro, em determinado momento, com a mão de obra militar minguando - principalmente quando o Império começou a mandar mais gente -, tiveram de recorrer aos negros dos adversários. (SILVA, 2012, n.p.)

Conforme continua a análise desta questão em seu livro:

Reunidos em Alegrete, ao final de 1842, para escrever a Constituição da República Rio-Grandense, os farrapos, embora houvesse uma proposta de abolição da escravatura, recusaram-se a apostar numa ideia tão cruel e a deixar os escravos desamparados dos seus senhores. Seriam cidadãos rio- grandenses apenas os homens nascidos livres e aqueles que por razões especificadas merecessem a alforria. (SILVA, 2018, p. 19)

Sobre a questão escravocrata, ainda fundamentando-se no trabalho de Silva (2018), mesmo tratando-se de uma revolução considerada de valores como igualdade, liberdade e humanidade, foi uma revolução sustentada com a venda de escravos. A respeito desse fato há ainda a traição dos porongos, em 14 de novembro de 1844, e da anistia destinada unicamente aos brancos e índios. Analisando o antagonismo social existente, compreende-se a razão de a revolução ocorrer sem que questões sociais, muito menos a escravidão, fossem de fato questionadas, pelo contrário, o que foi questionado foram questões que atingiam o aspecto económico e que prejudicavam determinada classe. Sob um olhar crítico, pode-se compreender não se tratar propriamente de uma revolução, mas um conflito, ou uma revolta civil entre classes sociais dominantes. (PESAVENTO, 1985; LEHMAN, 1979 apud JUNGLBLUT, 2011). Outra problemática é em relação à instigação e participação no conflito.

LEVANTE POPULAR OU REVOLTA DA ELITE AGROPECUARISTA?

Costumeiramente fala-se de um levante de amplo apoio popular. De fato, houve a adesão de escravos, negros libertos, mestiços, índios e pobres do campo. Esse aspecto ajuda a fundamentar o discurso romantizado da revolução, compreendendo-a como uma luta por respeito e uma vida minimamente digna. Uma luta por justiça social, ou uma luta por liberdade e pela auto afirmação e propagação da cultura local, conforme Spalding (1980) e Laytano (1983), mas, é importante irmos além nesta análise.
Havia insatisfação da população relacionada ao descaso do poder central, que pouco investia na província. Algo vista com maus olhos levando em conta os benefícios económicos e estratégico-militares que a região proporcionou. A verdade é que não houve um amplo apoio popular como se imagina. Conforme vemos em Jungblut (2011), boa parte dos moradores das maiores cidades da província, como Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, não aderiram em sua totalidade à revolução que se propunha. Porto Alegre, por exemplo, foi a principal base de sustentação contrária aos rebeldes. De acordo com Zago (2005) o rompimento com o poder central não ocorre na totalidade da província, onde várias regiões se mantiveram fiéis ao Império. Mesmo parte da elite local, a qual era dependente do comércio exercido com o centro, esteve fiel em virtude de seus interesses. Conforme Silva (2018) o sentimento de revolta realmente não era compartilhado pela maioria da população, menos ainda os setores das classes dominantes, mesmo que se tente apresentar como universal “uma insatisfação particular”.
A respeito à adesão de minorias, se analisarmos que boa parte da população era de uma camada desfavorecida, muitos viram uma oportunidade de estarem livres das amarras e das injustiças vindas do poder central, em especial o escravo, que desejava liberdade. (CHIAVENATO, 1988; PESAVENTO, 1990). Sobre isso, Spencer Leitman nos diz:

O estancieiro que possuía negros poderia concordar com a recente abolição do tráfico de escravos, mas não permitiria a emancipação. Foi precisamente esta maneira de ser que levou a elite da fronteira a manter uma estrutura social bastante estratificada durante a Guerra dos Farrapos, mesmo quando enfrentava a derrota. (LEITMAN, 1979, p. 23)

Conforme o historiador Raul Kroeff Machado Carrion, o caráter progressista da revolução ocorreu também em virtude de necessidade e interesse por parte de um setor participante na revolução, apesar da adesão de escravos, assim como a de negros libertos, mestiços, índios e pobres do campo (CARRION, 2014).

[...] as análises que não ‘enxergam’ o sentido progressista da luta farroupilha, têm um caráter simplório e anacrónico. Por um lado, reduzem a questão unicamente à direção dessa luta pelas oligarquias rurais gaúchas, desconhecendo o momento e as condições históricas em que ela se deu, que inviabilizavam uma hegemonia dos setores populares. Seria o mesmo que negar o caráter progressista da luta pela independência das colónias inglesas da América do Norte por ela ter sido dirigida pelos grandes proprietários de terras e pela incipiente burguesia norte-americana. Ou negar o caráter progressista da revolução francesa por ela ter sido hegemonizada pelo Terceiro Estado’, isto é, pela nascente burguesia francesa. (CARRION, 2014, p. 6)

Para Silva (2018) podemos enxergar a inteligência pragmática dos farroupilhas a partir de instruções de 4 de outubro de 1837. Vadios, arruaceiros e desertores do serviço militar eram incorporados às suas fileiras, uma espécie de civismo compulsório, que mobiliza os excluídos, criando um tipo de aliança entre setores sociais distintos. De forma complementar:

Além dos escravos, outros grupos de párias sociais preencheram as brechas do exército dos Farrapos. Eles vinham em busca de aventura e de fortuna geralmente. Não raro, porém, eram indivíduos que apoiavam a formação de um Estado republicano federado. Gaúchos, índios, negros livres e escravos fugidos do Uruguai, onde estavam sujeitos às práticas de recrutamento forçado dos coronéis uruguaios e brasileiros, que ali operavam com o objetivo de abrir uma segunda frente contra os rebeldes (LEITMAN, 1985, p. 68, apud CARRION, 2014, p. 4, 5).

Houve, contudo, naquele momento a revolta por parte da elite agropecuarista local, com seus interesses afetados diretamente, o que acabou sendo fundamental na instigação da revolução, não sendo propriamente motivada por uma ânsia de justiça social, mas, sim, pela crise e descapitalização da pecuária gaúcha. A citada elite somente se opõe ao Império quando se encontra enfraquecida política e economicamente. O contexto histórico faz com que compreendamos os interesses da elite, que, embora questionáveis, estavam condizentes com a classe à qual ela pertencia ligada diretamente ao gado, a terra e aos escravos (PESAVENTO, 1990). Conforme podemos analisar:

O presidente Antônio Rodrigues Fernandes Braga pretendia criar impostos sobre a propriedade rural, pois não achava justo que grandes latifundiários nada pagassem, enquanto o habitante do núcleo urbano, às vezes, tendo apenas uma casinhola para viver, pertencesse ao único grupo contribuinte de impostos territorial e predial. Os estancieiros protestaram contra a medida, apesar de o imposto ser bastante módico, pois segundo as ideias da época, as taxas só podiam recair na produção, jamais no capital (FLORES, 1990, p. 16, 17).

A questão de novos impostos, por exemplo, foi motivo de descontentamento por parte da elite local, somado a todo o contexto anteriormente apresentado, com dominação e subordinação económica e política por parte do poder central. Para Jungblut (2011) a revolução foi um movimento predominantemente organizado pelas classes dominantes pecuaristas, latifundiárias e escravocratas. De acordo com Pesavento (1990), a revolução foi instigada pelos estancieiros, em sua maior parte, além de charqueadores e comerciantes exportadores, já que se encontravam prejudicados com a política económica imposta pelo poder central. Como suporte havia a “peonada”. Estes, servindo como massa de manobra em uma campanha militar, se encontravam lutando por interesses que desconheciam e que nem eram seus, motivados por ideais que infelizmente não poderiam alcançar ou ainda por uma pseudo fidelidade criada em vista da estrutura social da província.

ANÁLISE DO CONFLITO SOB UMA ÓTICA QUARTO-TEÓRICA

Depois de compreender o conflito, juntamente com a análise em torno de suas raízes, contexto, fundamentos, estrutura social e envolvimento de seus principais atores, parte-se agora para uma análise sob uma ótica quarto-teórica, fundamentando-se no trabalho do sociólogo e cientista político russo Aleksandr Dugin. Embora possa em primeiro momento parecer paradoxal, já que dentre os fundamentos da Quarta Teoria Política encontramos uma clara e direta crítica ao liberalismo, enquanto o conflito o qual analisamos se fundamenta justamente em defesa de pautas liberais, ainda assim, não anula a possibilidade da análise. A Quarta Teoria Política representa a possibilidade da construção de algo novo, de uma alternativa, basicamente ela representa a busca pela superação dos modelos políticos vigentes.
O que é a ‘Quarta Teoria Política’ em termos de negação agora está claro. Ela não é nem fascismo, nem comunismo, nem liberalismo. Em princípio, esse tipo de negação é razoavelmente significativo. Ele incorpora nossa determinação de ir além dos paradigmas ideológicos e políticos usuais e fazer um esforço de modo a superar a inércia dos clichés internos ao pensamento político. Isso por si só é um convite extremamente estimulante para um espírito livre e uma mente crítica. (DUGIN, 2012, p. 37, 38)
Em seu trabalho, Dugin (2012) compreende que a Quarta Teoria Política não é algo que se encontra necessariamente pronta e aplicável, mas que se desenvolverá e moldará, podendo surgir ou não. O pré-requisito para o seu surgimento é o dissenso, a discordância frente aos modelos políticos que se apresentam. No caso da revolução farroupilha, conforme constatamos em vários autores, como Flores (1994), Pesavento (1990) e Zago (2005), ela emerge como resposta ao modelo imposto pelo Império do Brasil, buscando propor uma alternativa. Então, a revolução representa a busca pela superação do modelo político vigente, ao menos em um campo teórico. Não se pode menosprezar essa análise, embora Dugin (2012) seja um ferrenho crítico do modelo liberal, naquele momento histórico, era o modelo conceituai que melhor se adaptava às reivindicações que se propunham.
A distinção entre o campo teórico e o campo prático se faz necessária. Portanto, devendo ser analisado a fundo se a revolução e suas propostas representavam uma mudança real no modelo político vigente. É sabido que houve uma clara mudança na forma de governo, instituindo-se no Brasil pela primeira vez um governo tido como republicano. Além disso, se conseguiu desenvolver e dar atenção a pontos antes ignorados pelo poder central, sobre este último ponto em especial:

A República Farroupilha, apesar das circunstâncias contrárias, procurou organizar-se como estado moderno, progressista e impregnado de alta moral administrativa. No emprego do dinheiro público o governo republicano foi de inexcedível rigorismo. Os impostos eram moderados e os gastos se realizavam dentro da mais escrupulosa parcimónia.
Tratou a República de dar vigoroso impulso à instrução, que se achava estacionária desde a proclamação da independência [...]. Foram criadas pela República aulas em todos os munícipios, ao mesmo tempo que se desenvolvia intensa propaganda no sentido de despertar nas populações rurais o interesse pela instrução. As multas recolhidas aos cofres públicos eram, automaticamente, empregadas nas despesas com o ensino. O governo republicano criou o Gabinete da Leitura que mais tarde foi transformado em Biblioteca Nacional pela Constituinte de Alegrete.
No setor das comunicações, a República criou o serviço de correio; abriu várias estradas novas e realizou consideráveis melhoramentos noutras. Até a convocação da Constituinte, o governo era assistido pelo Conselho de Procuradores, órgão consultivo, composto de um delegado de cada munícipio [...].
Colaborou ela na feitura de diversas leis, inclusive a eleitoral, que estabeleceu o voto obrigatório a todos os que tivessem o direito de exercê- lo. (FILHO, 1958, p. 83)

Veremos na realidade que a estrutura social e de dominação permaneceu basicamente a mesma, havendo apenas uma alternância de poder. Pesavento (1990) aponta que apesar de uma pauta inicial ser uma dura crítica ao centralismo monárquico, a República que se formaria funcionaria da mesma forma, de maneira bem centralizadora. O que demonstra uma clara contradição:

O federalismo com as outras províncias brasileiras serviu muito ao discurso farroupilha. Porém, contraditoriamente constata-se que, após a Proclamação da República, não se falou mais em federalismo. A República Rio-Grandense não dedicou nenhum artigo do seu projeto de Constituição ao sistema federativo que tanto defendia. O governo Rio-Grandense se constituiu e permaneceu durante todo o decénio republicano centralizado. (ZAGO, 2005, p. 117)

Ainda conforme Zago:

A República Rio-Grandense seguiu a filosofia do modelo americano em seu discurso em relação ao Brasil. Porém, na prática, adotou o modelo francês de república una e indivisível, pois, não admitiu em seu projeto constitucional a forma federativa do modelo dos Estados Unidos da América. Como governo popular, assumiu uma posição conservadora limitando o conceito de democracia, uma vez que excluiu grande parte da população do processo eleitoral ao definir o conceito de cidadão Rio- Grandense. Era natural, no século XIX, excluir, dentre o povo, os sujeitos que não satisfizessem as condições necessárias para o cumprimento da cidadania. [...] a República Rio-Grandense foi conservadora dando continuidade à política imperial brasileira. Parece-nos contraditório: uma República com características modernas, com representações, e ao mesmo tempo com características antigas, aceitando naturalmente a escravidão. A forma como o Estado Rio-Grandense se organizou e se estruturou no seu projeto constitucional de 1843 deixa clara essa posição. (ZAGO, 2005, p. 114)

Em Flores (1994) vemos que a figura de Bento Gonçalves da Silva impõe uma espécie de ditadura, traindo assim o discurso que fundamentou a revolução. Desde o início não desejou renunciar a sua posição e poder, protelando por diversas vezes eleições e a sessão de abertura da Assembleia Legislativa e Constituinte. Algo que constatamos também no trabalho de Silva (2018), que aponta as características militares e autoritárias presentes na “república”, incluindo assassinato de farroupilhas que criticaram os principais chefes. Caso de nomes como Paulino da Fontoura, Antônio Vicente da Fontoura e Onofre Pires, este dependendo da leitura que se faz das circunstâncias de sua morte. Seria esta revolução iniciada e liderada por militares, que com um discurso em torno da liberdade e pelo fim da tirania viriam a fundar uma República com teor ditatorial. Conforme o autor, a alegação de que o contexto da guerra em andamento não permitisse um governo democrático é falho, se considerado que rebeliões em outras províncias naquela época trataram de “cristalizar o apego à democracia”. Silva fundamentando-se nos trabalhos do escritor e jurista Tristão de Alencar Araripe:

Em resumo, do ponto de vista do impiedoso Araripe, a República Rio-Grandense praticou o ‘despotismo militar’ e inventou um ‘simulacro’ de Assembleia Constituinte. Tudo decidiu-se por decreto. Os homens fardados impuseram-se como cidadãos especiais. Eliminavam os supostos traidores. Por decreto, mandava-se executar os adversários. (SILVA, 2018, p. 89)

Mais adiante em seu trabalho:

Exatamente como numa ditadura de esquerda ou direita do século XX, contrariando o mito, praticou-se a execução sumária, estimulou-se a delação, produziu-se uma nomenclatura de privilegiados e atentou-se contra a propriedade privada em benefício dos amigos e dos novos donos do poder. (SILVA, 2018, p. 121)

É em virtude dos aspectos abordados a visão de Jungblut:

[...] podemos dizer que a Revolução Farroupilha não foi uma revolta das camadas sociais mais pobres, mas uma rebelião dos ricos estancieiros sulinos que lutaram pelos seus imediatos interesses económicos e políticos. Grande parte da população envolvida só teve participação como ‘massa de manobra’ e ainda sob o controle direto dos líderes. Não existiu entre as lideranças, desejo algum de libertar as camadas mais pobres da exploração social, e muito menos da escravidão que predominava na época. (JUNGLUBT, 2011, p. 130)

E também de Zago:

[...] a Revolução Farroupilha foi um processo desencadeado pelas aspirações liberais da elite Rio-Grandense que culminou no nascimento de um novo país. No entanto, este novo país ao redigir o seu Projeto Constitucional, se consolidou sobre o conservadorismo social das relações patrimoniais de poder, pois a proclamação da República não foi essencialmente uma questão política ideológica e, sim uma adaptação política às necessidades económicas. (ZAGO, 2005, p. 118, 119) 

Muito do que foi analisado até aqui se torna reprovável sob uma ótica quarto- teórica. A estrutura social que se fazia presente com seu antagonismo social e escravidão, embora que se encontrasse como consequência de todo um contexto histórico, é negativa, pois se fundamenta em uma hierarquização normativa e no racismo, pontos estes rejeitados pela Quarta Teoria Política (DUGIN, 2012). Embora não aceitável, é compreensível se levarmos em conta, além do já mencionado contexto histórico, as características da sociedade e da política riograndense, que tinha como base, conforme Flores (1994) a estância, organização na qual predominava a figura do latifundiário, sem que houvesse uma unidade e uma reivindicação por parte de escravos, agregados e peões, que se encontravam em uma relação de dependência junto ao estancieiro. Esse cenário era também devido à situação de miséria e desemprego, a qual muitos se encontravam sujeitos.
Outro ponto que merece atenção diz respeito aos anseios e o contexto sociocultural da população, levantando a problemática se foram levados em consideração na revolução e na instauração da República. Em um campo teórico, sim, a própria historiografia em partes nos mostra isso, conforme analisa Pesavento (1990), muito se fala que estariam os farrapos servidos de uma vocação orgânica, originária de uma velha herança social, anterior à experiência campeira, lutando eles pela construção de uma sociedade que representasse os anseios e aspirações daquele povo. Porém, como passível de análise muito do que se propôs foi desvirtuado. Embora houvesse quem lutasse por uma superação do modelo político vigente e pelo desenvolvimento de uma sociedade que levaria em conta o contexto sociocultural e os anseios da população, na prática isso não se concretiza. Ainda assim, dentro de uma ótica quarto-teórica, a partir de Dugin (2012), a construção do mito, é extremamente valiosa para a construção social, prestando um serviço essencial para a história, dando vida a um sentimento de pertencimento e identificação. A partir daí cria-se a possibilidade da elaboração de uma estratégia comum no processo de criação do futuro, que leve em conta o que foi ignorado pelos líderes da revolução. Logo, a criação desta visão idílica do que representou a revolução, mesmo que servindo como uma ferramenta de legitimação de um sistema de dominação e de glorificação de falsos heróis, é extremamente valiosa no campo quarto-teórico, já que ela possibilita a construção da identidade do povo gaúcho.


FONTES

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Acesso em: 29 de setembro de 2020.
FLORES, Moacyr. Moacyr Flores: o maior acontecimento da história do Brasil é a Revolução Farroupilha. Publicado em: 2012. Disponível em:
<https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2012/12/moacyr-f... maior-acontecimento-da-historia-do-brasil-e-a-revolucao-farroupilha-3982621.html>. Acesso em: 02 de outubro de 2020.
SILVA, Juremir Machado da. Juremir: muitos comemoram Revolução sem conhecer a história. Publicado em: 2012. Disponível em:
<https://www.sul21.com.br/noticias/2012/09/juremir-muitos-comemoram-revol... nao-conhecem-sua-historia/>. Acesso em: 02 de outubro de 2020.
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SPALDING, Walter. A revolução farroupilha. São Paulo: Editora Nacional, 1980. ZAGO, Simone Maria. A República Rio-Grandense e a formação do estado nacional: uma análise teórica. In: Revista do Centro de Ciências Sociais e Humanas. Vol. 18, n°2, 2005. Pág. 109-120.