O problema antropológico da escatologia, parte 2: o dualismo do mundo espiritual

O dualismo discutido na primeira parte da análise é característico não só da humanidade, mas também dos anjos. Como ele funciona em ambos os mundos?

Entretanto, mesmo antes da criação do homem, uma divisão semelhante ocorre no nível dos anjos. Criados espíritos imortais, incorpóreos e eternos, os anjos são divididos em duas metades.

7 Mil cairão ao teu lado,
e dez mil, à tua direita,

mas tu não serás atingido.

(Salmos 91:7)

πεσεῖται ἐκ τοῦ κλίτους σου χιλιὰς καὶ μυριὰς ἐκ δεξιῶν σου πρὸς σὲ δὲ οὐκ ἐγγιεῖ

יִפֹּל מִצִּדְּךָ ׀ אֶלֶף וּרְבָבָה מִימִינֶךָ אֵלֶיךָ לֹא יִגָּשׁ׃

Mais uma vez, a natureza angélica unificada original está dividida em duas. Uma parte dos anjos é leal a Deus e mantém sua posição suprema na criação. A segunda parte, sob Dennitsa (Денница, no hebraico בֶּן-שָׁחַר, “filho da aurora”, no grego ἐωσφόρος, Lúcifer em latim) ou Satanás (hebraico שָׂטָן — literalmente “adversário”, “inimigo”) se rebelam contra Deus e sua criação e, como resultado da batalha na qual os anjos bons são vitoriosos, caem nas profundezas da existência, nos reinos abaixo das profundezas da criação.

Assim, a história do homem e sua separação ecoa o destino das entidades incorpóreas superiores, os anjos, também divididos em duas metades irreconciliáveis.

Em certo sentido, este é o resultado lógico da liberdade que Deus deu plenamente à sua criação. Todo ser dotado de uma mente e vontade, seja ele um ser humano ou um anjo, é capaz de escolher conscientemente se está com Deus ou sem Ele, e sem Ele, em última análise, significa contra Ele, ou seja, o caminho da rebelião e da luta contra Deus. Tal escolha inevitavelmente leva ao abismo e transforma o ser do sujeito numa vítima rejeitada, ou seja, um bode expiatório.

De acordo com a concepção da Igreja, no Juízo Final será determinado o destino final não só dos homens, mas também dos anjos (Carta de São Judas, 1:6). É então que Cristo, junto com os bons anjos e os santos, julgará os maus anjos, que compartilharão o destino dos bodes — “bodes expiatórios” — e finalmente perecerão no abismo.

A antropologia escatológica está, portanto, inextricavelmente ligada à angelologia. Homens e anjos têm um destino semelhante: a ambos é dada a plenitude da mente e da vontade, daí a plenitude ontológica da liberdade. E com a ajuda desta liberdade, tanto um como o outro definem seu destino: tornar-se uma vítima aceita por Deus ou ser rejeitada. Da unidade indefinida o caminho da criatura inteligente leva à bifurcação final e irrevogável do Juízo Final.

O destino comum de humanos e anjos

A uniformidade do destino entre seres humanos e anjos é um elemento essencial da antropologia religiosa. Ambos começam em unidade e terminam em separação. Ambos são totalmente dotados de liberdade, mente e vontade. Mas pertencem a duas dimensões diferentes: os seres humanos são dotados de um corpo denso, que os anjos não têm, e são, portanto, mortais (corpo). Os anjos não têm corpo e não são dependentes de uma concha densa: eles mantêm sua existência desde o início até o fim da criação.

Portanto, sua escolha não é no tempo, mas na eternidade — Dennitsa caiu no início dos tempos, cai na continuação da história mundial e finalmente será derrubado no Juízo Final. Os anjos têm uma escala diferente, mas as mesmas questões ontológicas que os humanos.

Esta imensidão, ademais da temporalidade, também se reflete no fato de que os anjos, estando livres de corpos, são capazes de controlar os elementos corpóreos do mundo. Daí o seu poder. A Revelação pinta um quadro do fim dos tempos em que os anjos, fiéis a Deus, infligem pragas mundiais à humanidade. E Satanás, o anjo caído, é chamado pelos apóstolos “o príncipe deste mundo” (Evangelho de João, 12:31) e até “o deus deste mundo” (Segunda Epístola de São Paulo aos Coríntios, 4:4), o que enfatiza o enorme volume de seu poder na gestão dos processos do cosmos.

Podemos dizer que a história humana vai desde a unidade de Adão até a separação final no Juízo Final na dimensão horizontal — temporal. A “história” dos anjos é vertical. Ela está organizada ao longo do eixo da eternidade, que permeia a criação de uma vez por todas. Daí que o Diabo já aparece no céu e nos últimos tempos assume um poder quase completo sobre o mundo. E eles têm um final comum, o Juízo Final.

No início e no fim da história mundial, o destino dos anjos é extremamente próximo ao dos homens, e a eterna verticalidade da criação é próxima da horizontalidade do tempo e isto nos leva a estar mais atentos às duas dimensões, a antropológica e a angelológica, que nunca podem ser completamente separadas uma da outra. No início e no final da história, os respectivos momentos — de unidade e bifurcação — unem completamente anjos e homens. Mas mesmo em épocas posteriores, assim como nas diferentes fatias da vertical angelical, homens e anjos estão em estreita relação um com o outro.

Mais importante ainda, a história humana e o destino dos anjos são definidos por um código fundamental de bifurcação. Na escatologia, isto se torna totalmente explícito. É no final dos tempos, no Juízo Final, que toda a verdade sobre a queda dos anjos será revelada. Da mesma forma, todo o conteúdo da existência do homem no tempo será revelado — “o segredo se manifestará” (Evangelho de Lucas 17; Evangelho de Mateus 10: 26; Evangelho de Marcos 4: 22).

A comunhão entre homens e anjos é estruturada por uma dualidade fundamental. Os homens, que ocupam a camada intermediária — horizontal — da criação, avançam para a separação final gradualmente — no curso de um processo histórico que atinge seu auge no momento do Juízo Final (aqui a dualidade da humanidade é manifestada em grau absoluto). A queda dos anjos ocorre verticalmente e instantaneamente — no contexto da eternidade criada, sempre simultânea para qualquer momento do tempo histórico. É por isso que a dualidade dos anjos é constante. Ela está sempre presente, do começo ao fim dos tempos, mas o julgamento final dos anjos caídos coincidirá com o Juízo Final.

Em outras palavras, o dualismo dos homens está implícito no curso da história, enquanto que o dualismo dos anjos é explícito em relação a qualquer momento da história humana — a escolha dos homens ocorre ao longo do tempo, a escolha dos anjos é instantânea. Ao mesmo tempo, a dualidade da humanidade se desdobra no contexto da queda dos anjos de uma vez por todas. Ambas as dimensões criam o volume de um processo ontológico que, em essência, é história sagrada.

A antropologia dos Salmos (interpretação de Avdeyenko)

Este dualismo fundamental da antropologia (assim como da angelologia) é trazido em foco pelo estudioso bíblico russo contemporâneo, filósofo e teólogo Evgeny Avdeyenko. Em sua interpretação dos Salmos e do Livro de Jó, ele fornece uma explicação detalhada de todo o volume ontológico da dualidade humana, interpretando os textos bíblicos desta forma.

Avdeyenkoenfatiza que o Saltério desempenha um papel tão excepcional na tradição e liturgia cristã precisamente porque representa a estrutura fundamental do homem, tendo o Rei Davi como o exemplo mais marcante do homem como tal, resumindo a história ontológica de Adão e antecipando o novo Adão, Cristo. Todo o conteúdo do Saltério é uma narrativa da estrutura, natureza e destino do homem como tal. E este é o seu significado duradouro.

A ênfase contrastante de Avdeyenko sobre a natureza antropológica dos Salmos é acompanhada por outro momento chave: em sua leitura, os Salmos são apresentados como uma narrativa fundamentalmente dualista com a oposição entre duas zonas do ser: luz e escuridão, o bem e o mal, o reino celestial e o inferno subterrâneo (sheol), até sua camada mais baixa, o abismo de Abadom. Deus é um, mas precisamente porque ele é um e somente Ele, o ser é essencialmente duplo.

Isto será totalmente revelado na separação no Juízo Final, mas para Avdeyenko este dualismo predetermina todo o conteúdo da antropologia e da história sagrada, cujo núcleo semântico é o Saltério. O dualismo antropológico (mas também angelológico) para Avdeyenko não é adiado para o acordo final dos tempos finais, mas opera desde o início e continuamente, sendo a chave principal para entender a religião como tal.

Aqui é apropriado lembrar o que dissemos sobre a vertical pela qual a queda dos anjos passou eternamente, está passando e continuará a passar.

O homem — Adão, Davi — é sempre colocado no centro desta vertical, onde a escolha é possível no tempo; a finalização desta escolha coincidirá com o fim dos tempos, mas o impacto dos dois polos é sempre sentido pelo homem, em cada momento de sua existência. Ele está sempre diante da escolha entre Caim e Abel, entre os apóstolos fiéis e Judas, entre o arcanjo Miguel e Dennitsa.

Ao contrário dos anjos, cuja escolha é sempre feita e inequívoca, o homem até seu último suspiro tem a oportunidade de mudar seu campo ontológico — “para se afastar do mal e fazer o bem” (Salmo 33:15). Depois disso, ele só tem que esperar pelo Juízo Final.

O dualismo do homem envolve tempo; é o núcleo de sua natureza moral. O homem nunca está mecanicamente destinado a ser bom ou mau. Esta escolha é feita ao longo da vida. Isto é o que nos dizem os Salmos, que Avdeyenko elabora.

Tradução: Augusto Fleck