K.M.: Continuando nosso “ABC dos valores tradicionais”, falaremos agora sobre a letra D – “a prioridade do espiritual sobre o material”, consagrada nos Fundamentos da Política Estatal para a Preservação e Fortalecimento dos valores tradicionais valores espirituais e morais.

A.T.: Este é um tema geral e abrangente, que se opõe a coisas corriqueiras, como, por exemplo, a ideia de lucro. Se, por exemplo, construir um arranha-céu sobre um cemitério é economicamente lucrativo, espiritualmente é uma completa blasfêmia. E claro, você deve priorizar a reverência aos mortos, porque um homem que não respeita os mortos matará facilmente os vivos.

Há coisas que nunca estão à venda . Você pode vender sua casa, seu carro e até seu rim, mas não pode vender sua mãe e seu país. Em geral, você deve fazer uma lista de coisas que não podem ser vendidas. Esta é, de fato, a prioridade do espiritual sobre o material. De resto, tudo se reduz ao famoso sistema dos três seis. Porque os três seis simbolizam aqueles dias da Criação, quando tudo foi criado. Nos seis dias Deus criou tudo, mas ainda não abençoou nada. O sétimo dia não criou nada, mas abençoou tudo.

Quando você pergunta a uma pessoa “o que você quer”, ela responde “tudo”. E bênçãos? “Não.” Isso seria “seis”. E se a mesma coisa se repetisse três vezes em relação ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, seria “666”. Assim, pelo selo de três seis, são seladas as almas e corpos de todas as pessoas que não desejam a bênção de Deus, que não precisam de Deus. E “777” significa que eu quero estar com Deus, eu quero Deus, e, logo, o que Deus dará.

“Na verdade, esta é a pergunta: você quer o selo “666” do Anticristo? Ou seja, você só se importa com as coisas materiais, só com o que você coloca no pão ou no bolso? Ou você tem algo em seu dicionário de sinônimos, em seu tesouro, que é um objeto de valor real, mas que não é medido em joules, quilômetros, quilogramas e unidades monetárias? Trata-se de uma metafísica arquivística, sem a qual os homens deixam de ser humanos e os grandes Impérios desmoronam.”

A.D.: Nesse ponto da enumeração dos valores tradicionais sobre “a prioridade do espiritual sobre o material”, nos deparamos com um verdadeiro choque, cultural e até atitudinal. Estamos acostumados com o fato de que o materialismo, o bem-estar material, o conforto material e o progresso material são a medida de tudo: sucesso, desenvolvimento, padrão de vida. Ou seja, vivemos em um mundo onde o material em todos os lugares – no Estado, na economia, na moral – prevalece sobre o espiritual .

E de repente lembramos que é errado, que não deveria ser assim. E mesmo que fosse, contrariaria todas as nossas tradições, toda a nossa trajetória histórica, toda a nossa cultura. Então, em algum momento cometemos um erro: esquecendo, perdendo nossa bênção – nas palavras do Padre Andrei – perdendo nossa dimensão espiritual. Em algum momento de nossa história, negociamos, traímos o espírito e nos juntamos à civilização do Anticristo. Agora competimos para ver quem a constrói mais rápido e melhor.

A prioridade do espiritual sobre o material significa uma mudança em tudo, uma mudança na natureza do próprio Estado russo. O Estado não é mais um “vigia noturno”, não é mais uma construção mecânica que deveria nos proteger dos extremos, como acreditam os liberais e materialistas. O Estado deve ter um propósito, uma missão. Então, ele deixa de ser dessacralizado, profano e passa a ser sagrado. Ou seja, o Estado, no qual o espiritual é superior ao material, deve tornar-se ideal, deve aspirar a um objetivo superior. Assim era o Império. Um Império sagrado. Santo poder, santo soberano, santo governante, santo povo portador de Deus. Ou o Império é sagrado e tem uma missão espiritual superior, ou não é mais um Império.

A vida das pessoas também deve ser orientada de maneira muito diferente a partir de agora. Não no conforto e riqueza pessoal, mas no serviço, na generosidade, no amor, na amizade, na caridade, na compaixão.

Tudo espiritual é colocado acima do material. A conclusão mais importante é que as esferas da cultura, educação, economia, política e informação devem agora se basear nesse princípio. No final, defesa, segurança e instituições relevantes também terão que ser reestruturadas. Não é o poder material, mas o serviço aos valores espirituais que deve se tornar o objetivo principal. E a classe dos guerreiros deve mudar. Seu heroísmo deve ser honrado por todos e seu status, respeitado. E o papel do Estado espiritual deve ser aumentado, a Igreja deve ser incluída com ousadia na vida da sociedade para torná-la mais limpa e elevada. E o trabalho honesto e livre deve ser colocado em um pedestal.

Em outras palavras, se aplicarmos consistentemente esse valor tradicional, que agora está se tornando um dos fundamentos da política pública, teremos que mudar toda a nossa vida. Absolutamente tudo. E não de uma forma inesperada e sem precedentes. Temos que voltar para a Santa Rússia. De fato, esta tese afirma a prioridade da Santa Rússia e a santidade em tudo. Não apenas a religiosidade como instituição, mas justamente o espírito que permeia todos os aspectos da vida, incluindo economia e direito.

K.M.: Pela primeira vez desde 1917 – 105 anos depois do Império Russo, que reconhecia a supremacia da Igreja – estabelecemos a prioridade do espiritual sobre o material. Este é um marco legal crucial, crucial devido ao fato de que agora nossa ideologia dominante não é nem o marxismo nem o liberalismo. Ou seja, não a atitude ocidental, materialista e bestial para com o homem e seu destino, sua vida.

O que nos diz o marxismo, que se tornou “científico” com a chegada dos bolcheviques ao poder em 1917? Ele nos fala sobre a base material e a superestrutura ideológica, sobre uma visão materialista do mundo. E a visão materialista do mundo implica apenas a prioridade do material sobre o espiritual. Vivemos assim até o fim do regime soviético, após o qual entramos na perestroika. Mas nada mudou: do ponto de vista ideológico, o materialismo continua reinando.

A.D.: Só piorou.

K.M.: A dimensão espiritual ideológica foi definitivamente perdida. No final da União Soviética, surgiram vários ensinamentos, mas o ABC, a base imutável do marxismo, permaneceu exatamente materialista. E hoje, pela primeira vez, nos Fundamentos da Política Estatal prescrevemos uma rejeição ao materialismo, descobrindo uma imensa esfera religiosa, espiritual, uma terceira dimensão em nossas vidas.

Nossas vidas não giram mais em torno do consumismo. Nós, Rússia, como Estado, reconhecemos que o espírito é uma prioridade política pública, nosso valor tradicional que o Estado protegerá, preservará e não permitirá que seja destruído. E agora não podemos dizer que o consumo e o PIB per cápita são os únicos e principais indicadores de bem-estar. Isso significa que o espiritual, o cultural, o ideológico em nosso país está se tornando parte da política de estado. O principal critério de sucesso e felicidade das pessoas. E isso aconteceu pela primeira vez em nossa memória.

A.T.: A civilização de Dostoiévski deve substituir a civilização de Fausto. Esta é a grande epifania de São Justino (Popovich). Os “meninos russos” de Dostoiévski abordam uma questão: há Deus e a alma ou não há nem Deus nem a alma? Porque com diferentes respostas a esta pergunta, você tem que viver de uma maneira completamente diferente.

Nem mesmo a era soviética, aliás, destruiu completamente essa noção. Porque os “falcões stalinistas” cantavam: “Para manter o corpo e a alma jovens, você não deve ter medo do calor nem do frio”. E até Josef Vissarionovich chamou toda a corte de escritores de “engenheiros de almas humanas”; “engenheiros” sim, mas “de almas”.

“O modelo moderno nos diz: não há alma, não há imortalidade, não há consciência, tudo são reflexos, instintos. E contra esse satanismo doméstico devemos, é claro, lutar, como um cavaleiro que dedicou sua espada à Virgem Maria. Temos que voltar aos significados evangélicos.”

A alma é mais querida que o corpo, o corpo é mais querido que a roupa. Uma consciência limpa é mais valiosa do que qualquer sucesso. A imortalidade da alma não é redimida por nada. “Que dará o homem em recompensa da sua alma?”, diz o Evangelho [de São Mateus, 10:26]. Que preço você pagará por sua alma? Nenhum: a alma é mais valiosa do que qualquer outra coisa. Na verdade, a alma humana é um objeto tão precioso que Deus derramou Seu sangue na Cruz pela alma humana. O preço da alma é o preço do sangue derramado no Calvário. Na verdade, a alma é mais preciosa, porque é imortal. Ela é o filho amado de Deus.

Ao proclamar isso, estamos puxando fios leves de enorme comprimento, que então se manifestarão na educação, família, vida cotidiana e tudo mais. A inclusão desses significados elevados nos textos das leis estaduais é um evento que não pode ser superestimado.

A.D.: Isso também se aplica à ciência. Parece que nossa ciência é objetiva e neutra. Mas não é de forma alguma, é ideologicamente orientada: é moderna e materialista. Antes de Newton, antes da Modernidade, era espiritual: era baseada em Deus, na teologia, na alma, na Eternidade. Mas quando chegou a era do materialismo, tudo virou de cabeça para baixo na ciência. Os anjos foram ridicularizados, a imortalidade da alma foi negada, Deus foi primeiro hipotetizado e depois totalmente esquecido.

E agora, com base nessa disposição do Decreto nº 809 sobre a prioridade do espiritual sobre o material, devemos também reconsiderar as atitudes básicas da ciência. E este é um grande trabalho! Ou seja, precisamos de uma Academia de Ciências Espirituais. A Academia de Ciências deve repensar suas próprias bases: nossos cientistas estão dedicados a desenvolver inteligência artificial, tentando decifrar o genoma e criar armas capazes de destruir o mundo? Em geral, entendemos corretamente o que é ciência e o que é erudição? Estamos fazendo a coisa certa, mesmo que nos entreguemos de todo coração e livremente a essa ciência materialista?

“Revisar os próprios fundamentos da ciência também faz parte do nosso programa, a Ideia Russa. Porque se o espiritual é superior ao material, significa que vivemos sob o signo de uma ideia. Nossa ideia profunda, a ideia tradicional.”

Acho muito importante que o pensamento teológico também desperte. A Igreja tem se defendido o tempo todo, dizendo: “Não reivindicamos muito. Não tentamos influenciar suas instituições políticas e ideias científicas. Bem, dê-nos algum lugar na sociedade, mesmo que apenas para a realização de serviços rituais.” Na verdade, a teologia é uma grande coisa, imerecidamente descartada e esquecida. A teologia é a verdadeira ciência espiritual. Na teologia, o espírito triunfa sobre a matéria. E me parece que a Igreja deve dar um passo adiante.

A.T.: Está na hora, claro. Mas Kierkegaard costumava dizer que a teologia moderna (dos séculos XVIII-XIX) era uma garota corada sentada em uma janela e olhando com olhos lânguidos para os dândis que passavam. E os dândis são, de fato, o progresso, a ciência, o materialismo…

A.D.: “666.”

А.Т.: Sim, “666”. Claro, a história do movimento universitário mostra até que ponto a ciência está integrada à teologia. A universalidade foi entendida através da teologia, e depois vieram a aritmética, a música, a astronomia, etc. Foi o que aconteceu, aliás, nos países da Ásia Central e Oriental. A grande Madraça de Ulugue Begue ensina 52 disciplinas, incluindo física e metafísica, química e alquimia.

K.M.: A ciência fornou-se ciência na época de Francis Bacon, quando a magia foi renomeada como ciência. A alquimia foi dividida em várias disciplinas especiais, que agora são consideradas pseudocientíficas. Mais tarde, eles declararam que havia um método científico. O que é justo: o método científico existe e é lógico. Mas, por algum motivo, eles imediatamente se esqueceram do método científico quando começaram a inventar de onde tudo veio. Como surgiu o homem, como surgiu o universo. O método científico foi imediatamente esquecido e tivemos novas teorias.

A propósito, gostaria de dizer algumas palavras sobre “físicos” e “compositores”. Mesmo nos tempos soviéticos, no auge do materialismo, quando Khrushchev prometia mostrar “o último pop” na TV, havia “compositores”. “Físicos” em geral são impossíveis sem “compositores”. Sem isso não há fuga da imaginação, nem livre movimento do pensamento. Você não pode fazer nada se sua alma não cantar. E mesmo que você seja proibido de acreditar em Deus, você acreditará em alguma verdade. Você vai procurar de qualquer maneira. Em geral, é um sentimento muito russo – buscar o alto, o principal. Estes são os nossos valores tradicionais.

A.T.: Para concluir o grande tópico de hoje, eu diria que os russos se dividem em duas categorias: os que leram Dostoiévski e os que não leram. Como água e óleo, eles não se misturam. E se lermos Dostoiévski, ele disse em Os irmãos Karamazov, a propósito: diga-me, Alyoshka, Deus existe ou não? Deus existe. E há uma alma. É a prioridade do espiritual sobre o material.

K.M.: Isso conclui nossa bela parte sobre a prioridade do espiritual sobre o material.